Maracanã

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quarta-feira, 3 de março de 2010

Quatro sonetos de meditação, Vinicius de Moraes

Quatro sonetos de meditação



Vinicius de Moraes



Mas o instante passou. A carne nova


Sente a primeira fibra enrijecer


E o seu sonho infinito de morrer


Passa a caber no berço de uma cova.






Outra carne vírá. A primavera


É carne, o amor é seiva eterna e forte


Quando o ser que viver unir-se à morte


No mundo uma criança nascerá.






Importará jamais por quê? Adiante


O poema é translúcido, e distante


A palavra que vem do pensamento






Sem saudade. Não ter contentamento.


Ser simples como o grão de poesia.


E íntimo como a melancolia.



II

Uma mulher me ama. Se eu me fosse


Talvez ela sentisse o desalento


Da árvore jovem que não ouve o vento


Inconstante e fiel, tardio e doce.






Na sua tarde em flor. Uma mulher


Me ama como a chama ama o silêncio


E o seu amor vitorioso vence


O desejo da morte que me quer.






Uma mulher me ama. Quando o escuro


Do crepúsculo mórbido e maduro


Me leva a face ao gênio dos espelhos






E eu, moço, busco em vão meus olhos velhos


Vindos de ver a morte em mim divina:


Uma mulher me ama e me ilumina.


III

O efêmero. Ora, um pássaro no vale


Cantou por um momento, outrora, mas


O vale escuta ainda envolto em paz


Para que a voz do pássaro não cale.






E uma fonte futura, hoje primária


No seio da montanha, irromperá


Fatal, da pedra ardente, e levará


À voz a melodia necessária.






O efêmero. E mais tarde, quando antigas


Se fizerem as flores, e as cantigas


A uma nova emoção morrerem, cedo






Quem conhecer o vale e o seu segredo


Nem sequer pensará na fonte, a sós...


Porém o vale há de escutar a voz.


IV



Apavorado acordo, em treva. O luar


É como o espectro do meu sonho em mim


E sem destino, e louco, sou o mar


Patético, sonâmbulo e sem fim.






Desço na noite, envolto em sono; e os braços


Como ímãs, atraio o firmamento


Enquanto os bruxos, velhos e devassos


Assoviam de mim na voz do vento.






Sou o mar! sou o mar! meu corpo informe


Sem dimensão e sem razão me leva


Para o silêncio onde o Silêncio dorme






Enorme. E como o mar dentro da treva


Num constante arremesso largo e aflito


Eu me espedaço em vão contra o infinito.





Oxford, 1938


in Poemas, sonetos e baladas


in Antologia Poética


in Livro de Sonetos

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