Maracanã

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segunda-feira, 27 de abril de 2009

O creme da juventude


O creme da juventude

A vendedora insistiu. Veio entregar o creme para rejuvenescimento da pele, marca famosa, encomendado pela minha eterna vaidade, para rostos com mais de 45 anos, em pleno fim de tarde de um domingo preguiçoso e extemporâneo.

Descobri que precisava me aprontar e rapidinho. Estava abandonada, caseira e largadona. Vesti depressa uma pantalona estampada e a blusinha amarela.Um par de argolas enormes, o rabo de cavalo, nenhum batom. Cara lavada, desci para pegar e pagar o santo remédio que cura o tempo.

Subi o elevador, com o pote mágico na mão, vitoriosa por fazer parte da legião feminina que se cuida para ser bonita apesar da idade que avança. Larguei o creme da juventude na bancada do banheiro, depois eu uso. Quando tiver saco.

Naquela horinha certa, quando sobreviverem em mim as certezas excusas de que preciso estar linda para agradar os outros. Sub-entende-se nesses outros, os homens , os companheiros, os amigos, os candidatos a namorados, os \"ex\", para quem não se deve deixar cair a peteca nunca, por conta de lamentarem nos ter perdido algum dia.

Mas, francamente, nada fiz nesse domingo que não fosse refestelar-me assistindo filmes, lendo livros e jornais, ouvindo boa música, escrevendo alguns trabalhos, cozinhando o trivial na base do engordiet... E, o ato de receber a tal encomenda, própria para maiores de 45, me inoculou uma ponta de \"deprê\" que preciso expulsar com energia.

Sozinha, se buscar as rugas no espelho, encontro. Sozinha, se procurar lembranças tristes, descubro-as, infelizmente. Sozinha, se questionar as razões do isolamento consentido, será fácil ler as respostas de múltipla escolha.

Agora, que já disponho de uma nova arma para encobrir as rugas, preciso ainda sepultar amargas recordações, abrir uma janela na torre onde me encastelo nas noites de domingo e sair por aí.

Quero dançar de novo o \"paso double\", justo aquele compasso a dois, que, em algum lugar do meu coração deva estar ensaiando atribular-se com os quesitos da soma de sentimentos humanos, menos egoístas e mais compartilhados. Talvez eu acabe com esse arremedo depressivo, no instante em que tiver o gesto nobre de aceitar o amor, de novo, no meu coração. Deixar que ele entre e me absolva.

Considerar que nada vale uma pele bem cuidada num rosto que esconde a fuga das paixões profundas. A pele por mais linda que seja, é superfície. Vou ligar de novo para a simpática representante comercial dos comésticos. Preciso perguntar pelo produto revolucionário: - Vocês têm algo especial para amaciar as entranhas, limpar as impurezas da alma e apagar as marcas de quebradeira do coração, que fomos adquirindo, e teimam em aparecer tão fortes, principalmente nas noites de domingo?

Maria Aparecida Torneros

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