Maracanã

Maracanã

quinta-feira, 4 de setembro de 2014

CORA CORALINA, POESIAS


CORA CORALINA, POESIAS


:: POESIAS ::

• A ENXADA
• A ESCOLA DA MESTRA SILVINA
• A GLEBA ME TRANSFIGURA
• A JAÓ DO ROSÁRIO
• A LAVADEIRA
• A OUTRA FACE
• AINDA NÃO
• AMIGO
• ANINHA E SUAS PEDRAS
• ANTIGUIDADES
• AS TRANÇAS DA MARIA
• ASSIM EU VEJO A VIDA
• BECOS DE GOIÁS
• CAMINHO DOS MORROS
• CÂNTICO DE ANDRADINA
• CIDADE DE SANTOS
• CONCLUSÕES DE ANINHA
• CONFISSÕES PARTIDAS
• CORA CORALINA, QUEM É VOCÊ?
• DAS PEDRAS
• DO BECO DA VILA RICA
• EVÉM BOIADA!
• EXALTAÇÃO DE ANINHA (O PROFESSOR)
• FREI GERMANO
• HUMILDADE
• LUA-LUAR
• MASCARADOS
• MEIAS IMPRESSÕES DE ANINHA (MÃE)
• MENOR ABANDONADO
• MEU DESTINO
• MEU EPITÁFIO
• MINHA CIDADE
• MINHA INFÂNCIA
• MULHER DA VIDA
• NÃO CONTE PRA NINGUÉM
• O BECO DA ESCOLA
• O CÂNTICO DA TERRA
• O CHAMADO DAS PEDRAS
• O PALÁCIO DOS ARCOS
• O PRATO AZUL-POMBINHO
• O TRIÂNGULO DA VIDA
• ODE A LONDRINA
• ODE ÀS MULETAS
• OFERTA DE ANINHA
• ORAÇÃO DO PEQUENO DELINQUENTE
• ORAÇÃO DO PRESIDIÁRIO
• POEMA DO MILHO
• RESSALVA
• RIO VERMELHO
• SEQUÊNCIA
• TODAS AS VIDAS
• TRAÇO DE UNIÃO
• TREM DE GADO


MINHA INFÂNCIA
(Freudiana)

Éramos quatro as filhas de minha mãe.
Entre elas ocupei sempre o pior lugar.
Duas me precederam - eram lindas, mimadas.
Devia ser a última, no entanto,
veio outra que ficou sendo a caçula.

Quando nasci, meu velho Pai agonizava,
logo após morria.
Cresci filha sem pai,
secundária na turma das irmãs.

Eu era triste, nervosa e feia.
Amarela, de rosto empalamado.
De pernas moles, caindo à toa.
Os que assim me viam - diziam:
“- Essa menina é o retrato vivo
do velho pai doente.”
Tinha medo das estórias
que ouvia, então, contar:
assombração, lobisomem, mula-sem-cabeça.
Almas penadas do outro mundo e do capeta.
Tinha as pernas moles
e os joelhos sempre machucados,
feridos, esfolados.
De tanto que caía.
Caía à toa.

Caía nos degraus.
Caía no lajedo do terreiro.
Chorava, importunava.
De dentro a casa comandava:
“- Levanta, moleirona.”

Minhas pernas moles desajudavam.
Gritava, gemia.
De dentro a casa respondia:
“- Levanta, pandorga”.

Caía à toa...
nos degraus da escada,
no lajeado do terreiro.
Chorava. Chamava. Reclamava.
De dentro a casa se impacientava:
“- Levanta, perna-mole...”

E a moleirona, pandorga, perna-mole
se levantava com seu próprio esforço.
Meus brinquedos...
Coquilhos de palmeira.
Bonecas de pano.
Caquinhos de louça.
Cavalinhos de forquilha.
Viagens infindáveis...
Meu mundo imaginário
mesclado à realidade.

E a casa me cortava: “ menina inzoneira!”
Companhia indesejável - sempre pronta
a sair com minhas irmãs,
era de ver as arrelias
e as tramas que faziam
para saírem juntas
e me deixarem sozinha,
sempre em casa.

A rua... a rua!...
(Atração lúdica, anseio vivo da criança,
mundo sugestivo de maravilhosas descobertas)
- proibida às meninas do meu tempo.
Rígidos preconceitos familiares,
normas abusivas de educação
- emparedavam.

A rua. A ponte. Gente que passava,
o rio mesmo, correndo debaixo da janela,
eu via por um vidro quebrado, da vidraça
empanada.

Na quietude sepulcral da casa,
era proibida, incomodava, a fala alta,
a risada franca, o grito espontâneo,
a turbulência ativa das crianças.

Contenção... motivação... Comportamento estreito,
limitando, estreitando exuberâncias,
pisando sensibilidades.
A gesta dentro de mim...
Um mundo heroico, sublimado,
superposto, insuspeitado,
misturado à realidade.

E a casa alheada, sem pressentir a gestação,
acrimoniosa repisava:
“- Menina inzoneira!”
O sinapismo do ablativo
queimava.

Intimidada, diminuída. Incompreendida.
Atitudes impostas, falsas, contrafeitas.
Repreensões ferinas, humilhantes.
E o medo de falar...
E a certeza de estar sempre errando...
Aprender a ficar calada.
Menina abobada, ouvindo sem responder.

Daí, no fim da minha vida,
esta cinza que me cobre...
Este desejo obscuro, amargo, anárquico
de me esconder,
mudar o ser, não ser,
sumir, desaparecer,
e reaparecer
numa anônima criatura
sem compromisso de classe, de família.

Eu era triste, nervosa e feia.
Chorona.
Amarela de rosto empalamado,
de pernas moles, caindo à toa.
Um velho tio que assim me via
dizia:
“- Esta filha de minha sobrinha é idiota.
Melhor fora não ter nascido!”

Melhor fora não ter nascido...
Feia, medrosa e triste.
Criada à moda antiga,
- ralhos e castigos.
Espezinhada, domada.
Que trabalho imenso dei à casa
para me torcer, retorcer,
medir e desmedir.
E me fazer tão outra,
diferente,
do que eu deveria ser.
Triste, nervosa e feia.
Amarela de rosto empapuçado.
De pernas moles, caindo à toa.
Retrato vivo de um velho doente.
Indesejável entre as irmãs.

Sem carinho de Mãe.
Sem proteção de Pai...
- melhor fora não ter nascido.

E nunca realizei nada na vida.
Sempre a inferioridade me tolheu.
E foi assim, sem luta, que me acomodei
na mediocridade de meu destino.

©CORA CORALINA
In Poema dos Becos de Goiás e Estórias Mais,

Nenhum comentário: