Quando li o texto do Contardo Calligaris sobre o filme "Um homem sozinho", descobri que eu tinha escrito quase igual a ele sobre o mesmo tema, e resolvi comunicar-me, pra dizer-lhe isso, ou seja, falar das impressões semelhantes que certos motivos inspiram ao incidir sobre nossos sentimentos e reflexões.
Qual não foi minha surpresa porque depois disso, ele e eu iniciamos uma troca de emails. De forma amena e coloquial, fomos nos conhecendo, ainda que distantes fisicamente. Até que, finalmente, o encontrei, no lançamento do seu livro "Um conto de amor", que ele veio autografar também no Rio.
Ao lançar o meu livro "A mulher necessária", troquei com ele algumas confidências e medos de principiante. O Contardo, com seu jeito italianão de ser, incentivou-me e acalmou, deu-me força, mandei pelo correio um exemplar, direto pro seu consultório de psicanalista experiente.
Muitas vezes eu me deleito com seus artigos da Folha, concordando em número, gênero e grau, entretanto, há vezes em que discordo plenamente do que ele diz, mas admiro sua verve solta, sua sinceridade freudiana, sua sensibilidade humaníssima, e sigo sendo sua amiga e fã.
Um dia, ele me convidou para a estréia do Homem da Tarja Preta, li a respeito, bateu-me enorme curiosidade. Já tínhamos trocado correspondência aludindo sobre as cobranças que a sociedade impõe aos homens, no exercício da sua masculinidade estereotipada. Não pude comparecer à estréia, mas, em passagem de alguns dias por Sampa, em abril de 2009, aproveitei que estava na casa de uma amiga e ex aluna, e fomos, em quatro, eu, ela e os pais dela, pessoas que estimo muito, ambos, na casa dos setenta anos, e muito religiosos.
A peça é forte, moderna, antenada, questionadora, instigante. O público reage de muitas maneiras, e uma delas, é rejeitando seu conteúdo desafiador. Claro que me vi em palpos de aranha, quando o casal de senhores ao meu lado indignou-se com o personagem que se travestiu de mulher em plena noite, em frente ao computador, soltando seus demônios. Minha amiga, numa consequente defesa psicológica, dormiu quase o tempo todo, grudada nos pais que permaneceram até o fim, segundo eles, em respeito a mim.
Eu, por minha vez, confundi sentidos, mas admirei a coragem do autor, trazendo à baila um tema tão vivo na comunicação atual. As conversas fantasiosas das salas de bate-papo frente ao dilema de seres que não se reconhecem nos modelos que lhes são impostos. Vi que o Contardo lá estava, acompanhado do casal Bruna Lombardi e Carlos Alberto Ricelli, mas, na saída, com a pressa dos meus acompanhantes, não pude cumprimentá-lo. Fiz depois, via email.
Agora, depois de muitas apresentações em várias capitais brasileiras, O Homem da Tarja Preta chega à Bahia, e certamente, será objeto de reação e reflexão, apesar das vésperas de carnaval diluirem, em tese, o pensamento crítico a um questionamento real e presente na vida nossa de cada dia. Modelos de vida sufocados pela necessidade de corresponder ao que de nós esperam por aí.
Vale conferir e observar. Vale assistir e polemizar. Vale perceber que todos podemos ser e ter "nick names" em salas de bate-papo, ao passo que usemos máscaras protetoras, em madrugadas silentes, no escuro dos nossos purões incendiados. Contardo é sensível, pode nos acordar de sonhos ou de pesadelos feéricos através de texto tão contundente, é bem verdade que pode também nos fazer rir e nos proporcionar momentos de descontração por nos sabermos protegidos por tarja preta, na foto do jornal, que nem revela nossos rostos e nem diz verdadeiramente quem somos nós...
Cida Torneros
O Homem da Tarja Preta - Texto: Contardo Calligaris. Direção: Bete Coelho. Ator: Ricardo Bittencourt. O monólogo trata dos dilemas de um homem casado com controvertidas fantasias sexuais que costuma exorcizar em frente à tela do computador, em salas de bate-papo. Cine Teatro Sesc Casa do Comércio – Av. Tancredo Neves, 1109, Pituba (3273-8732). R$ 40. 16 anos.De quinta a sábado, 21h; domingo, 20h. Até 7 de fevereiro.
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