Sirley e Rita
Sirley Dias de Carvalho, 32 anos, profissão: doméstica, usa o transporte coletivo, na espera em ponto de ônibus na madrugada, no Rio de Janeiro.Viu-se, de repente, em plena floresta de pedra, atacada por animais selvagens que lhe fraturaram o rosto, quebraram o braço, parecendo famintos de carne fresca e humana. Se não conseguiram comer-lhe as vísceras, de fato, deixaram-lhe as marcas viscerais da dor e da desumanidade.
Rita Lee, 60 anos, compositora e cantora, usa a inteligência para defender as mulheres e outros grupos discriminados socialmente, transporta-nos pela via da sensibilidade consciente. A roqueira-síntese de Sampa, ou de qualquer cidade grande, não estava errada. “Mulher é bicho esquisito, todo mês sangra”. E diz mais: “Sexo frágil, não foge à luta”.
Sirley não fugiu, foi espancada, desrespeitada, massacrada, eram seis, era um bando, todos jovens, talvez drogados, talvez nem sejam humanos.Sirley teve sorte. Mais do que o índio Gaudino, mais do que outros seres, mulheres, prostitutas, homossexuais, também agredidos.Eles agem, geralmente, em gangues com algumas características perceptíveis, como, por exemplo, vidas de nível mais elevado que a maioria faminta da população brasileira. Ou, melhor índice de escolaridade também. Sirley pôs seu rosto marcado, roxo e inchado, bem na tela da televisão, não se envergonhou de contar sobre os socos, pontapés, xingamentos, sobre as atrocidades que sofreu, porque ela acredita que os tais jovens devam pagar pelo que lhe fizeram.
Chegou a dizer que os perdoa; a magoada Sirley é nobre, é fina flor, é requintada em gestos de grandeza. Talvez Sirley seja carinhosa demais com a família, os amigos, os patrões, os vizinhos.Talvez ela nem sonhasse que lindos rapazes de boas casas, com “pinta” de atores de novela televisiva, aparentemente exercendo o direito de aproveitar sua juventude sadia com festas, alegria e muita música, um dia, no auge da insanidade, lhe fizessem sentir-se como um trapo.
Rita Lee, em recente depoimento, declarou que “só as mulheres podem desarmar a sociedade, são as mulheres que irão dar um adeus às armas, quando forem ouvidas e valorizadas.” Sirley e Rita, dois grandes corações femininos, inundados de amor e esperança, embora partidos, inúmeras vezes, pela constatação pútrida de que a barbárie é aqui e agora. Elas sonham que os senhores policiais, investigadores, desembargadores, autoridades constituídas de todos os poderes, providenciem o adestramento e a domestificação dos indivíduos de qualquer sexo ou idade que tenham se contaminado com o pregão “odiai-vos uns aos outros” e perdido o elo que os ligaria à civilização.
Elas devem imaginar que os pais e mães que honram sua missão passem aos filhos e filhas o segredo do elo perdido e reencontrem, sob a tutela das próprias almas feridas e fracassadas, um caminho de volta ao verdadeiro sentido de pôr no mundo um ser humano, na acepção da palavra.
Maria Aparecida Torneros
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