Maracanã

Maracanã

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

O relicário da velha senhora...







O relicário da velha senhora
Maria Aparecida Torneros da Silva


Seu quarto, se é que se poderia chamar aquele ambiente de quarto, parecia um amarfanhado de móveis e objetos, misturados os estilos, entranhando os laços do tempo, um rebuliço de cores e molduras. Tudo levava a crer que sua vida fora um ir-e-vir de constantes buscas pelas alegrias da vida, passando, evidentemente, por suas cruezas. 



Ela mantinha ainda, apesar dos seus oitenta e tantos, um sorriso esperto, e, com surpresa, fazia brilharem os olhinhos azuis, circundados por uma pele pregueada, de um rosto expressivo, que me induzia a respeitar pessoas cujas vidas tenham superado os dias e as noites, à procura da felicidade. Sem titubear, eu que a conhecera há pouco tempo, numa praça qualquer, já me sentindo sua amiga, apesar de uma diferença de idade beirando quarenta anos, fiz a pergunta que me engasgava desde que aquela velha senhora me infundira um certo gosto pela sua dignidade solitária. - A senhora se sente feliz? 


Esperei seu semblante aquietar-se. Naquela visita semanal, que me habituara a fazer-lhe depois que sumiu da praça, por causa de uma artrite enfadonha, entre um chá e umas torradinhas, minha amiga octogenária me mostraria a importância do amor à vida. 


Sua resposta soou calma aos meus ouvidos. Levou-me às lágrimas pelo conteúdo e pela forma. Admirei-a profundamente. Fiz-me pequenina diante da grandeza de criaturas como ela, que precisam tão pouco para serem felizes. 


- Menina, disse-me, claro que sou feliz! - Você ainda não percebeu? Tenho tudo. Possuo um imenso relicário no coração. Tenho a história da minha própria vida. Ora, minha amiguinha, quantos podem olhar para trás como eu e lembrar de tantos momentos incrivelmente maravilhosos. Fui uma menina que brincou descalça nas ruas de um subúrbio e subi nas árvores para comer suas frutas. Estudei e aprendi a ler, o que no meu tempo não era privilégio das mulheres. 


Também, tive um grande amor que só conheci aos cinquenta anos, e, como ele fosse um homem casado com outra, pudemos ter maravilhosos encontros, inesquecíveis, que me renderam belos poemas, que guardo como um relicário. Sou uma mulher tranquila, leio ainda meus livrinhos e posso fazer minhas orações ao cair da tarde, agradecendo a Deus esta longa vida. 


Além do mais, veja como a vida me recompensa de tudo, ao me presentear com uma nova amiga que me visita, que me ouve, e que me dá a chance de dizer-lhe que precisa também a aprender a guardar num relicário cada instante, como este agora. 


Dizendo isso, a velha senhora, me puxou a mão e passou-a na sua cabeça. Senti a seda dos cabelos branquinhos. Chorei pela liçao de vida que acabara de receber e liguei o pequeno rádio da sua cabeceira, esperando que uma canção qualquer nos aliviasse a força do sentimento. Ironia, coincidência ou magia dos deuses, o radinho berrou lindamente: - Os sonhos mais lindos, sonhei.. és fascinação , amor... 


Recolhi-me, por segundos, fascinada pela vida, mais uma vez. E pus-me a juntar elementos vitais para o meu próprio relicário, a partir daquele dia.

Nenhum comentário: