Maracanã

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segunda-feira, 4 de maio de 2009

Nélida Piñon, discurso: A pátria do verbo


A pátria do verbo

Os homens transitam pela esperança na condição de filhos da treva e da luz. Sabendo , de antemão , que os atos inaugurais consolidam-se primeiro no plano das utopias, para onde convergem versões múltiplas e dispersas da trajetória humana.

Afinadas com tal princípio, as vozes, que nos chegam hoje do passado, arregimentam como outrora os valores do seu tempo, proclamam aos contemporâneos e sucessores a certeza da permanência da arte, do livre curso do pensamento.

Avançando pelas frestas dos anos, elas instalam-se entre nós esta noite, como se legitimassem, outra vez mais, o sonho que inventaram naquela noite de inverno de 1897, quando, inaugurando a Academia Brasileira de Letras, deram início a uma fascinante jornadas do espírito brasileiro.

Não faz falta saber o que diriam estas vozes, pungentes e crédulas, caso estivessem entre nós. Seus timbres discretos, cosmopolitas, rascantes às vezes, teatralizariam a solenidade que transcorreu no antigo Pedagogium, da rua do Passeio, quando escandiram as palavras que afinal puseram em marcha os anseios civilizatórios sonhados por muitas gerações antes deles. Ansiosos por anunciar que a sorte da nova comunidade intelectual selava-se em meio às incertezas, à escassez de recursos. Balizada pelo esforço de limar a realidade adversa que então aflorava no Brasil do final do século XIX.

Aqueles homens cumpriam, comedidos, os rituais humanos. Frente à arte do cotidiano, resguardavam sentimentos. Não há registro da natureza do óleo da fé que lhes banhou a alma. Mas, seres de uma pátria frugal, acanhada ante os olhos estrangeiros, opunham-se firmemente ao realismo corriqueiro, desintegrador das utopias. Inclinados a inventar o mundo como forma de celebrar a realidade.

A intervenção dos anos, contudo, não nos isolam deles. Aquelas palavras, sábias e prudentes, ajustam-se às urgências do nosso tempo. Mas serão de Machado de Assis, de Joaquim Nabuco, de Lúcio de Mendonça, entre tantos, as vozes a confirmarem que a despeito da instituição nascer sob a égide provisória do nomadismo, a visão que guardavam da cultura seria pluralista, teriam a língua como alicerce da unidade da pátria?

Passados agora cem anos, é forçoso proclamar que as quimeras e as ilusões, originárias deste inquietante discurso da arte, nunca se afastaram de sua matriz singular. Mais que nunca, na origem e no destino, enlaçam-se com o Brasil, graças ao pacto que nos força a auscultar o coração da espécie brasileira, representada por todos nós.

A tecer, à sombra da conjuração dos dias, a longa narrativa que, a despeito da erosão dos anos, subjuga-se ao cinzel da memória. Esta memória que considera os instantes imperceptíveis, as variantes múltiplas, os episódios que dizem respeito aos brasileiros, em geral, e aos ilustres 252 acadêmicos, em particular, que passaram por esta instituição. Uma vez que uma cultura, como a nossa, refina-se quando o cotidiano a persegue com o fardo excedente do seu legado, quando a fruição do real marcha em compasso com o humanismo.

Esta Casa buscou sempre o cálice da tradição. Uma tradição consubstanciada no saber acumulativo, no denodo em recolher aquela matéria negligenciada, posta à margem, após a passagem dos movimentos revolucionários, dos avanços estéticos. Fragmentos filtrados e aprovados pelo tempo, e que, vistos de longe, formam um mosaico a sinalizar os contornos de um país, de uma instituição.

Uma tradição apta a modernizar o presente. A impedir que o germinar do novo enseja a demolição do repertório ancestral, que tanto nos explica. Disposta a promover a fusão do que é herança com o que emerge das correntes contraditórias, lendárias, rebeldes. A preencher as lacunas da memória, a fortalecer a erupção das idéias, que tiveram nascedouro nesta Casa.

Sob o estímulo desta tradição, a Academia Brasileira de Letras sempre se rendeu às turbulências da arte, às tentações do pensamento, à insubordinação criadora. Instaurou em seu cotidiano o ritual da cerimônia, quis conciliar o que emana do sagrado e do profano, amenizar as discrepâncias, rejeitar os expurgos arbitrários, tornar o convívio fonte de concórdia.

Uma tradição que nos ensinou a conviver com os impasses da história, a resistir aos tormentos da modernidade fátua. A ousar falar do futuro. Obstinada em realçar que a glória da instituição, repousando em tantas vitórias individuais, favorece o fervor coletivo.

O Brasil é um país recente. As nações jovens queixam-se da escassez de sua história. Sentem-se como que privadas daquela matéria arcaica e inconsútil, advinda das mil culturas, que impregnou os solos milenares. Temem que suas façanhas não reverberam na alma, e que suas genealogias, empilhadas ao acaso na memória, neguem-lhes acesso ao próprio mistério, implantem em sua psique o sentimento do vazio. Desatentas, no entanto, em registrar que tal carência estimula-nos a viver a imaginação com voluptuosa intensidade. A fabular ao redor do tempo e do espaço enquanto inventa o contínuo e apaixonante diálogo com o Brasil, com os seres da invenção, com a ficção das realidade.

A Academia Brasileira de Letras engendra seu enredo em consonância com o Brasil. Não perde de vista existir, fora de suas paredes, um país a cobrar-lhe providências culturais, o rastreamento de seus traços civilizadores. Como conseqüência, há cem anos enveredamos indiscriminadamente pelas tarefas da arte, do pensamento, da ciência. Por tão longos anos vimos protagonizando uma ação cultural e criativa que nos inscreve no epicentro da nação.

O conceito de imortalidade há muito ronda esta instituição. Fomentado, decerto, pelo imaginário popular, que na ânsia de crer na perenidade das coisas, na permanência da arte, reveste o criador com o manto da ilusão. Insiste em desprender a arte das agruras do cotidiano, em devolver o artista à vida, sob forma transfigurada. A imortalidade significando tão-somente o desejo coletivo de prorrogar as ações humanas vinculadas à construção artística.

Há um século devotamos inabalável amor à língua lusa. Esta língua que os bárbaros, os necessitados, os poetas, os navegantes, os funâmbulos, seres da ilusão, ígneos e intensos, engendraram para corresponder às carências dos homens.

Afinal, a língua é a alegria dos homens. Nela repousa a poesia do desejo, a melancolia dos gritos primevos, o advento das estações, a exaltação do fino mistério soprado, quem sabe, pelo próprio deus.
Falar, escrever, pensar, alcançar as fendas onde a metáfora pousa solitária, circunscreve-nos ao picadeiro dos homens, ao galeão dos condenados, aos salões galardoados, às terras onde se trava a batalha do verbo e das exegeses.

Como filhos da pátria da língu, de um idioma composto com sobras latinas, gregas, asiáticas, africanas, uma mistura que por onde esteve semeou rastros míticos, pronunciamos suas palavras com unção e ira, captamos-lhe o cintilar de seu sensível timbre.

Esta língua portuguesa, de feição arqueológica, perambula agora pelo coração do Brasil. O corpo sagrado do seu enigma resguarda-se nos descampados e nos grotões, acata os presságios das bruxas, pede emprestado ao vizinho farinha e sentimentos íntimos.
Os inventos verbais desta língua, que peregrina pela península ibérica, pela África, pela Ásia, pela nossa América, trazem a chancela natural da transgressão. Arrasta consigo a luxúria mesmo quando confrontada com experiências radicais, míticas, vizinhas do abismo de Deus.
Feita também de suspiros africanos, chegou ela ao Brasil infiltrada pela nostalgia que nos induz a romper a cada dia o casulo do seu mistério, a perseguir suas contrafacções. É assim que ela converge, acumula, depura-se, exercita-se no gerúndio com a precípua função de ativar a realidade.
É dever desta língua repartir intrigas, predições, narrativas, o prólogo e o epílogo da vida, o vestíbulo das longas despedidas, entre as criaturas do sul, do litoral, do planalto, do sertão, os ribeirinhos. Os habitantes das geografias múltiplas e intransigentes. Todos eles premidos pela emboscada da fantasia e da emoção.

Vinda de tantos recantos do hemisfério, a língua aderiu por inteiro à fábula de uma nação. Esteve na amada Galícia, onde ali conheceu o irrenunciável sentimento oriundo do Finisterre, - a extremidade da Terra -, cruzou o Minho, deixou o Tejo para trás, nos idos de março de 1500, estendeu suas ramas à África e Ásia, com o intuito de florescer, até ancorar afinal no outro lado do Atlântico.

No Brasil, soçobrando em meio aos vastos recursos do pensamento, esticou as cordas plangentes das palavras. Roçou enigmas, traduziu uma pátria composta de mel, leite, trigo, a inexcedível história humana.
Esta língua lusa é uma sombra desapiedada. Sob o teto da ilusão, o instinto do verbo arranca das gavetas os sentimentos resguardados entre os lençóis que rescendem a jasmim. Sobre cada vocábulo projeta a luz incisiva do inventário da arte.

Na morada desta língua, nada lhe sofreia o impacto. Seu mundo visionário, saturado pela desmedida paixão, rende-se à metáfora no esforço de revelar-lhe o fulcro onde reside a equação da poesia humana. De ritmo largo, este idioma implanta em nós os dilemas da condição humana, o destino dos homens. Não permite que nos exilemos do mundo.

Esta sensível e afortunada eloquência auspicia à língua elucidar a emoção através de preciosa linguagem simbólica, que é assunto de berço, do território amoroso, da perdição alada do pensamento.
Nada mais fez a Academia Brasileira de Letras nestes cem anos, desde a sua fundação, que honrar a aventura do espírito sob o vertiginoso impulso do idioma. Sempre soubemos que não há pátria sem a defesa da língua. Seus códigos, seus objetos, suas emoções, situam-nos no mundo. Não há igualmente lar e liberdade sem o exercício pleno das palavras que nos levam ao pranto, ao riso, ao amor, aos pequenos descuidos do cotidiano. A louvar o Sol, a reverenciar a Deus.

Esta magnífica língua lusa, falada por obra dos homens em Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe, leva no bojo o discurso da ruptura, as emendas que engrandecem a jornada dos homens.

Sob o primado da imaginação e da língua, a Academia Brasileira de Letras celebra neste 20 de julho de 1997, junto às nações amigas, aos brasileiros de todas as gerações, o seu Primeiro Centenário.
Integrada rigorosamente aos instantes constitutivos da história do Brasil, ela reverencia a construção de um tempo que semeia sonhos, esperanças, a paisagem do futuro.

Agora secular, esta Academia Brasileira de Letras percorre livre os espaços da memória. Não teme retroceder nos anos, alojar-se entre os aedos gregos, os poetas da evocação. E, por amor à cultura, estar nos lugares onde nossos corações estiveram em tantos momentos. Em qualquer terra onde se deflagrou no passado a aventura de fabular. De narrar a história que os homens vêm escrevendo há milênio e cuja leitura, perturbadora, consola o humanismo da nossa Instituição que , ao longo de cem anos , exerce irredutível defesa da civilização brasileira.

Um comentário:

Prof. Ademar Oliveira de Lima disse...

Olha eu aqui de novo lendo os seus escritos! Abraço!!