Solteirice explícita...
Ambos estavam solteiros. Depois de seus casamentos longos, filhos criados, namoros intensos e alguns recomeços, falaram sobre o tema da solteirice explícita. Lugar comum para cinquentões libertos de tantas amarras anteriores. Decisões personalistas, escolhas resolvidas entre mil e uma possibilidades, a opção de sairem sozinhos aos lugares públicos, desfrutando de si mesmos, da própria companhia, tanto nas salas de cinema como nas mesas dos restaurantes.
Tinham, finalmente até, o direito de recusar parceiros que não lhes interessavam, preferindo a solidão reflexiva e pródiga de maturidade conquistada.
Estavam solteiros, mas não tinham assinado nenhum documento que os obrigasse a permanecer nesse estado de intenso livre arbítrio, entremeado da inconsciente busca de alguém que os motivasse a voltar a amar.
Se bem que sempre se reconheciam amando a vida, a si mesmos, suas famílias, tantos amigos e amigas. Esse tipo de amor lhes inundava os dias. Mas o amor de casal acasalado, amor de busca entre macho e fêmea, lhes sufocava as madrugadas.
Sabiam o quanto era difícil garimpar alguém que lhes encaixasse em desejos, hábitos e expectativas de vida. Confidenciaram-se. Aliás, o tempo, nos dois últimos anos de constantes encontros profissionais, lhes fora favorável, lhes oferecendo uma dose respeitável de confiança mútua e amizade crescente.
Seus abraços eram tão carinhosos quanto aconchegantes.
Suas confissões eram desmascaradas, e, de tão sinceras, remetiam a capítulos de novela romântica ou trágica, dependendo do humor em suas sessões semanais.
Os olhos se encontraram depois de dois meses afastados. Havia satisfação e segurança na troca desse olhar questionador que os tornava caçador e caça, faces opostas de uma mesma moeda, como signos cuja dualidade é a fonte do seu status sólido.
Como um mágico que tira um coelho branquinho da cartola, ele a surpreendeu com jeito de pedinte do amor. Ela, por sua vez, mudou o foco e o viu, pela primeira vez como um homem, apenas como um homem, não mais como um amigo profissional com quem se reunia todas as semanas.
Então, num gesto impensado e impulsivo, ele segurou as mãos dela, juntas, de uma só vez, a uma distância menor que um metro, puxando-a para aconchegar-se no seu peito.
Ela fechou os olhos. Deixou-se levar pelo sentimento pleno. Era só isso. O carinho do homem solitário, lhe oferecendo segurança emocional e vontade de ficar ali pelo resto da vida.
Mas, em seguida, meio envergonhados, despediram-se.
Marcharam em busca de alguns sonhos realizáveis. Viagens, escrita de livros, camaradagem humana, e um ponto contou a seu favor para que se tornassem um novo casal de namorados.
Ele , o psicanalista, ela, a paciente, ambos, solteiros, cinquentões, com filhos criados, sede de viver um novo amor, talvez até um novo casamento.
Quando chegou em casa, ela pensou em agradecer a ele pela sessão que acabava de ter com ele. Esclarecedora, cada palavra dita por ele, soara como um libelo para o caminho dela, que o achava sem rumo, sentindo-se perdida como uma vaca solta num imenso pasto.
Compreendeu então que estava livre para escolher que espécie de capim devia comer, onde devia se proteger do verão intenso e talvez pular alguma cerca que ainda a separava da vida lá fora.
Agradeceu a ele, via recado no celular. Ainda assim, esperou por ele por muitas noites e orou por ele, nas manhãs ensolaradas e nos dias nublados.
Ambos estavam solteiros, continuaram a cruzar seus olhares, perdoaram seus arrepios constantes, expuseram-se então, e num dia de sábado, ele a convidou para jantar.
Fundiram-se em um único olhar durante todo o encontro. Ainda permaneceram solteiros distanciados por um bom período. Suficiente foi esse tempo que se permitiram, para refletir sobre o que sentiam e o que esperavam um do outro. Resumiram numa palavra pequena, gasta, corriqueira, mas plena de significados. Amor... essa palavra pôs fim ao seu longo tempo de solteiros, e dali em diante, passaram a ter duas casas, duas camas, dois endereços, duas chances individuais de replantar seu jardim e colher flores para enfeitar seus domicílios. A partir desse dia, buscaram estar juntos, sempre que fosse possível, necessário e prazeroso. E abandonaram o estado "civil"izado, em cerimônia íntima e simbólica, concorrida por familiares e amigos.
A partir de então seriam solteiros aconchegados e próximos. Continuaram a morar em suas casas anteriores e a preservar a tal intimidade tão violada nos dias de hoje. Assim, seriam eternamente visitas na casa um do outro, e brindariam para sempre, juntos, o tal Valentine's Day, a cada fevereiro, numa promessa gratificante, enquanto pudessem ficar assim, solteiros, amigos, amantes, presentes, carinhosos e saudosos um do outro, explicitando um novo modus vivendi, entre os novos solteiros do século XXI. Se realmente viriam a contrair matrimônio, nem eles mesmos sabiam responder. Apenas tinham uma certeza, sua solteirice era compartilhada entre si, e seus sentimentos os entrelaçavam em rituais de carinho e sensualidade, com salutar distância das suas intimidades. Tinham encontrado um modo de viver que os agradava, e seu amor era tão real quanto suas almas podiam alcançar, pois se descobriram felizes e se amando verdadeiramente. Mesmo assim, preferiram continuar solteiros, inteiros, parceiros, amigos, amantes e admiradores um do outro pelo resto de suas vidas. Seriam como dois pássaros a voarem para se bicarem e beijarem todas as vezes que necessitassem um do outro.
Aparecida Torneros
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