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quarta-feira, 16 de abril de 2014

Desaniversario do Golpe, volver a los 17



JORNALISMO
Desaniversário do Golpe: Volver a los 17

Especial Desaniversário do Golpe vai ao passado e ao futuro do Brasil com uma pergunta: o que é ser de esquerda?
Volver a los diecisiete después de vivir un siglo

Es como descifrar signos sin ser sabio competente

Volver a ser de repente tan frágil como un segundo

Volver a sentir profundo como un niño frente a Dios

Eso es lo que siento yo en este instante fecundo

(Mercedes Sosa, “Volver a los 17”)

Subindo o tom doloroso até o sublime, minha fala tem um quê de garota, quando se trata do golpe militar de 1964, que está completando agora 50 anos.

Brusca epifania que me aperta a garganta.

Na época eu tinha nove anos de idade. Não sabia do que se tratava. Somente que, de repente, minha casa virou um pandemônio. Ora militares do Exército, ora da Polícia Militar chegavam sem avisar e sem pedir licença e jogavam tudo pelos ares e nos reviravam pelo avesso.

Numa destas vezes, eu brincava no quintal, sol a pino, e uma sombra por detrás me fez voltar a cabeça. E me deparei com uma metralhadora bem diante do meu nariz. Enquanto isso, outros invadiam minha casa.

A imagem de minha mãe desfalecendo e se “urinando” na porta de entrada.

Meu avô trancando as portas e janelas de sua casa, que ficava no mesmo quintal.

Os livros tão amados por meu pai e por mim sendo jogados numa fogueira, sob meus protestos e prantos.

Durante alguns muitos anos, eu ainda desmaiava quando via um carro de polícia ou caminhão verde de manobras do Exército.

Não se falava no assunto. Bullying na escola, quando colegas me importunavam pedindo informações: “Por onde anda o seu pai???”. Naturalmente orientadas pelos pais deles para que eu revelasse o paradeiro do meu e pudessem eles mesmos denunciá-lo à repressão, ou por simples mórbida curiosidade.

Naturalmente não sabia o que era ser esquerda no país.

As incoerências me avassalam hoje, tanto quanto antigamente. Via meu pai ser recriminado e eu também, por tabela, por ser a filha do comunista.

Recebi certa vez uma carta de meu pai por intermédio de um cadete, em que me explicava que estava preso por pensar diferente dos homens do poder e não porque havia cometido algum crime, do tipo roubar ou matar.

Na verdade ainda nem sabia que meu pai estava preso, tamanha era a confusão em que nossas vidas haviam se transformado.

Silêncios. Cochichos. Mistérios. Medo.

E solidão. Muita solidão.

A ARTE IMITA A VIDA?

Em 1997, assisti ao filme O que é isso, companheiro?, de Bruno Barreto. Baseado no livro homônimo de Fernando Gabeira. E dei muita risada. Coisa curiosa ver atores e atrizes, cuja característica principal era o humor (por causa das atuações em divertidas séries televisivas), em papéis de drama extremo. Luiz Fernando Guimarães, Fernanda Torres, Pedro Cardoso e Cláudia Abreu, atores que respeito muito e admiro, fazendo os revolucionários e sequestradores. Não me comovia. Não me atravessava, naquele momento.

O que é isso, companheiro?, de Bruno Barreto (Brasil, 1997):


Entretanto, num dia qualquer de 2002, aqui em São Paulo, fui ver Kamchatka, sem ler sinopse, tampouco resenhas. Pelo título achei que deveria ser algum filme passado em um cenário oriental. Totalmente desavisada e com minha filha, que deveria ter uns nove aninhos, me sentei, com pipocas em punho. À medida que o filme foi acontecendo, pela visão de um menino de nove anos, cujos pais eram militantes na ditadura da Argentina (1976-1983), fui me vendo, não na história em si, fui me identificando com o olhar de quem vivenciou aqui no Brasil aquela solidão. A falta de informação e o medo. As cenas se sucediam e uma, em especial, em que o menino corria atrás do carro dos pais, me remeteu a um dia, quando chegava da escola e vi um jipe do Exército levando mais uma vez o meu pai. E eu correndo gritando atrás do jipe na esperança de tentar deter mais uma vez o sumiço dele. O desespero do menino e aquela sensação de perda e de abandono me aterraram e despenquei num choro convulso e catártico dentro do Cine Lumière, no Itaim Bibi. Luzes se acenderam. Havia umas quinze pessoas. Fui até o toalete e lá continuei num pranto convulso que jorrava desapontamento, cicatrizes indeléveis de um tempo ladrão de alegria e sequestrador de ilusões. Era o disparador de tantas mágoas contidas. De tanto desconhecimento. De tanta dor. Ainda assim voltei para ver o filme e continuei soluçando durante toda a segunda projeção.

Minha filha, em sua ingenuidade, sacou: “Você tá assim porque se lembrou do vovô?”. Isso, sem nem sequer tê-lo conhecido, porque ele morrera num “acidente” de carro em 1971. E ela nasceu em 1993.

Trailer de Kamchatka, de Marcelo Pineyro (Argentina, 2002):


O NÃO PERTENCIMENTO

Mas, e daí? Cresci achando que meu pai morreu num acidente trágico. Hoje, quarenta e três anos após sua morte, alguns insistem na hipótese de não ter sido acidente. E me vejo às voltas com a Comissão da Verdade, procurando agulha em palheiro.

Mais um baque num corpo emocional que acredita ter superado essa questão, que, entretanto, volta sempre a incomodar. Reverencio a revolucionária que em mim habita, defendo-a e encaro a disciplina que ela exige para se realizar. Volto à juventude que clamava por um mundo ainda possível naquele realismo utópico, de “resistência”.

Vejo tantas e tantas reportagens, artigos, pontos de vista sobre estes 50 anos do golpe. Entretanto, tem gente da minha geração que passou por ela e não sabe que ela existiu.

Mais uma vez, este sentido de “não pertencimento” me acomete. Não se ouviam os gritos. Não se presenciavam os horrores. Tudo era minuciosamente camuflado dos sentidos dos homens comuns. Só rufavam os tambores para os “de esquerda”. Para os que se achavam inteirados de tudo e lutavam pela Liberdade. Liberdade, esta, questionável aos olhos da elite conservadora e do sectarismo da Igreja. Não me reconhecia e não me reconheço ainda nestes moldes de hipocrisia.

Hipocrisia, esta chaga que sangra e se arraiga cada vez mais nos modelos do establishment.

BASTA!

Sei lá se escrevo bem. Sei lá se estou sendo fiel aos mártires deste holocausto brasileiro, pelo valor universal que eles merecem por uma luta à altura de sua história.

Fiz protestos. Shows em universidades. Peças de teatro e festivais de música. Muito antes de ser uma universitária. Queria que ouvissem o grito da minha dor. Era uma graça que me concedia para me suprir da minha própria perda.

Continuo hoje tentando ser solidária a meus sentimentos e a minha verdade grita: “Chega!”.

Basta de se esconder debaixo da capa burguesa que corrompe tudo que toca. Destas amostras de barro que nos formatam, endurecem e paralisam em nome de uma vida melhor. Das etiquetas e do status que determinam nosso padrão de vida, como “bem ou malsucedido” pelas posses, pelos cargos, pelos títulos e pelas aparências.

Não me detenho mais em nome de nenhuma doutrina, partido, associação, seita ou facção. Sigo em meu próprio nome. Na verdade vou (me) esculpindo, dia após dia, ao encarar e transmutar minhas crenças provisórias.

Me interessa “tentar”, ao menos, ser coerente com o que penso e digo. Para não dar distorção e me transformar num ser humano amorfo, cuja legenda está fora de sincronismo. Dou lugar àquela criança impetuosa.

Não sou de direita. E me recuso a ser muro. Pendo, sim, para a esquerda. Porque é a esquerda que reconheço, através dos séculos de história de exploração do homem pelo homem, que vem gritar contra as injustiças sociais, contra os preconceitos, contra as discriminações de qualquer tipo, gênero, raça, fé e poder econômico.

Não me filiei a nenhum partido nem a nenhuma facção política, a fim de continuar livre para ir e vir. As associações e instituições refletem os preconceitos e estereótipos de seus dirigentes. E cada uma, a seu modo, tenta nos incutir seu modus vivendi, estendendo seus tentáculos para nos transformar em seres robóticos, acomodados numa forminha de gelo, a seu bel-prazer.

À LA GAUCHE

Volvendo à esquerda, quando ela cumpre seu papel revolucionário de ir contra a corrente, do abuso de poder e das ideias. Sejam elas quais forem. Principalmente se ela está a favor dos fracos e oprimidos, dando a eles condição de sair de sua triste condição e ensinando-os a lutar pelos seus direitos, qualificá-los pessoal, profissional e socialmente, mas sem desconhecer seus deveres.

Assim como há pobres soberbos, há ricos humildes. O homem imprime seu valor com ações e frutos. O subversivo é quem subverte o que oprime. Jesus era subversivo aos olhos do governo de Roma. Não havia outra solução a não ser eliminá-lo, por um motivo qualquer, como continuam fazendo com quem incomoda o poder vigente. Há casos em nossa própria história, como Tiradentes e mesmo o contraditório Calabar, que decidiu trocar de lado, a favor talvez de um protopovo brasileiro. E tantos outros por aí afora.




Protesto contra a ditadura, 1968, Rio de Janeiro



DESANIVERSÁRIO

Nestes 50 anos de desaniversário do golpe de 64, só me lembro de que perdi meu pai tantas e tantas vezes. Ora pelo desconhecimento de onde ele estava. Ora pela própria militância. Ora pela Polícia Militar. Ora pelo Exército. E, finalmente, pela própria morte, em 1971.

E me desculpem os que se consideram “de direita”. Os que se consideram os certos e bem direcionados na vida. Os formadores de opinião. E mesmo alguns acadêmicos e intelectualizados da elite da esquerda. Muitos destes nem sequer sabem o que é militância.

Só me lembro do seu olhar, na hora de irmos embora, quando íamos visitá-lo, quando finalmente soubemos onde ele estava.

E do dia em que finalmente voltou para casa e seus amigos lhe perguntaram qual o sabor da Liberdade. Ele respondeu que ainda era cedo para descrever. Com seus braços amarelos de nicotina até o cotovelo, olheiras fundas, manchas roxas e afundamentos por todo o corpo esquelético. E uma tristeza milenar, que identifico nos olhos de Che Guevara, de Mandela, de Gandhi. Tais como os olhos de Jesus em suas tantas representações pictóricas. Imagens que vêm, vez por outra, atormentar meus eternos questionamentos.

Idealismo? Endeusamento? Sei lá... Meu pai era um pobre militante anônimo para as estrelas da luta armada em todo o país. Como centenas de outros hoje desaparecidos, sem paradeiro, sem história. Apenas um fantasma que nos assombra. Em nome de um passado sem glórias.

Mas, para mim, era, e é, um herói que me ensinou, pelo exemplo, que todos os homens são iguais, e também a não se curvar diante da ilusão de poder, seja ele qual for.

Imperfeito. Assumia suas incoerências. E ouvia com atenção minhas admoestações de menina e moça. Me dando ares de importância. Apoiava minha forma de realizar e me deixava livre para errar e acertar por minha própria conta. Parece que sabia que iria logo embora e procurou passar, desde cedo, livros e ensinamentos, em que me calco até hoje.

Simples. Direto. Uma oralidade ímpar. Carismático e amado por todos, ou quase. Naturalmente não pelos que se consideravam os baluartes da história dos supostos não pensantes. Ele, para estes, era a ovelha negra, a ser extirpada da sociedade. Mas o seu amor incondicional pelo ser humano me encantava e me comove até hoje. Guardo de 64, e dos anos de ditadura, marcas que dificilmente o tempo apagará. Assim como alfinetes esquecidos por algum alfaiate distraído. Mas não faço a apologia da necrofagia. Entretanto, apesar das infâmias praticadas em nome da lei e da ordem, nenhuma especulação escapará da trágica realidade da história.

Mas o amor que aprendi com este amigo, irmão, companheiro e só por acaso meu pai me acompanha, e me faz não desistir cada vez que encontro muralhas de incompreensão. E, resistindo à hipocrisia, me rendo à Liberdade.

Oh! Liberdade! Liberdade!

Que ela abra suas asas sobre nós.

E volvo a los nueve, doce, diecisiete, dieciocho, tantas vezes quantas forem necessárias, para louvar o presente de ter tido Almair Mendes Avellar como meu pai, meu país nesta “encadernação”.

Ilustração: Jussara "Gonzo" Nunes

Foto: Agência JB/Kaoru, junho de 1968, escadarias do Teatro Municipal do Rio de Janeiro



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Desaniversário do Golpe: Ser de esquerda, ontem e hoje, entrevistas de Shellah Avellar


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Desaniversário do Golpe: Abaixo a ditadura, quadrinho de Jussara “Gonzo” Nunes

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Comentários
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Soraya Câmara | 30/03/2014
Querida Shellah. Fiquei emocionada com sua história. Suas palavras me tocaram profundamente. Adoro ler os seus textos. Faço questão de divulgá-los.Que presente ter tido Almair Mendes Avellar como pai!
Da amiga de sempre, Soraya Câmara.
monique platt | 31/03/2014
Querida,

Quanto amor, quanta emoção e verdade estão presentes neste texto que retrata a sua estória!... Obrigada por compartilhá-lo e, sobretuudo, obrigada por fazer parte da minha vida! Em primeiro lugar, pretendo mostrar o texto à minha mãe, que conheceu e pôde admirar a pessoa tão especial e querida que foi seu maravilhoso pai (ela já me falou muitas vezes...). Depois, irei divulgá-lo para tantos quantos puder! Beijos, Monique
Giselle Goldoni Tiso | 31/03/2014
Comovida com seu texto, com sua dor , com sua memória. Que nela resida sempre, seu pai, um homem que deu a vida por um mundo mais justo e fraterno! Um bj, meu carinho sempre! momento de muitas lembranças e de reafirmar sempre : nunca mais! Um bj
Patricia Franconere | 31/03/2014
Quanto mais leio seus textos mais eu a admiro!talento e sensibilidade me emocionam. Embora eu não tenha sentido na pele os efeitos da ditadura (talvez por viver uma ditadura e um horror pessoal dentro de casa)não há como ignorar sua existência.
Maria Alice de Toledo Gaspar | 31/03/2014
Ainda estou "digerindo com o coração"a intensa emoção que vivi ao ler o seu brilhante artigo. Vivenciei os idos de 64/68 com o mesmo temor, angústia e uma vontade imensa de sair às ruas e me rebelar com aquele trágico momento de nossa história.Passamos pelo mesmo "aperto", embora em situação diferenciada... Meu pai, magistrado íntegro, capaz no seu mister de distribuir justiça, sendo impingido, por força de atuar na antiga Vara da Fazenda Pública( que cuidava das ações de interesse da União, Estado E Município) a aceitar comando superior em sua judicância...Jamais se submeteria a esse ato indigno. Forças militares cercaram o prédio do Fórum de Niterói...Portas e janelas se fecharam, mas ele permaneceu ereto, sombrio, ciente de suas responsabilidades..não vergou seu caráter ilibado... Mesmo pressionado de perder o cargo, julgou conforme seu entendimento jurídico, à ponta da lei. Sutilmente, se viu obrigado a se aposentar...daí a mágoa; a revolta e o câncer o consumiu aos 64 anos. Ele, Geraldo Toledo, é a minha "bandeira" de integridade e exemplo de fé e força moral...Liberdade, Liberdade...abra as asas sobre nós!!!! "Volver A Los 17.. Belíssimo e seu depoimento/sentimento...Pura VERDADE/EMOÇÃO! Parabéns
Humberto Mendes | 31/03/2014
Franscisco Otaviano de Almeida Rosa dizia:
"quem passou pela vida em branca nuvem,
E em plácido repouso adormeceu,
Quem não sentiu o frio da desgraça
Quem passou pela vida e não sofreu,
Foi espectro de homem... não foi homem
Só passou pela vida, Não vivceu

1964 de triste memoria, nos fez a tdos sentir o frio da desgraça, pela saudade do pai, do irmão, do amigo, que a gente nem imaginava em qual masmorra podiam estar.
Foram em casa, queimaram meus livros e minha mãe, coitadinha, tão inocente, ainda achou que eles queriam me levar pro bom caminho.

Teu texto falou por mim. Muito obrigado Shellah querida.

Humberto
Você tinha nove e eu vinte e um.
Orlando Pimentel | 01/04/2014
Você tinha nove e eu vinte e um.

A REDENTORA

Para o amigo Ovídio Jaufret Guilhon.

Aspirante a poeta por hereditariedade,
universitário em formação,
iamos, meus vinte e um anos e eu,
sob a quixotesca armadura que me havia imposto,
fazendo do lápis trincheira
e duelando em folhas de papel,
denunciando, sempre que eram desfraldadas
as bandeiras da injustiça, da força e da violência.

Desprezando sábios conselhos de prudência,
em minha evidente imprudência de jovem,
recusava os escudos do pseudônimo e do anonimato
e, peito desnudo, insistia na denúncia.

Se por ela viesse o prematuro fim,
se minha voz fosse sufocada
nos difíceis dias pelos quais passávamos,
estava certo de que a violência
que o causasse, pairaria no ar,
como a denúncia última
de quem, tendo como arma
a caneta,
ousou protestar.
Liberdade! Liberdade!
Maria Célia Marques | 01/04/2014
“E volvo a los nueve, doce, diecisiete, dieciocho, tantas vezes quantas forem necessárias, para louvar o presente de ter tido Almair Mendes Avellar como meu pai, meu país nesta “encadernação””
Uma “encadernação” impecável. Você uniu, ordenou, costurou solidamente os cadernos de uma vida num volume com-pacto e im-pacto Cobriu com uma capa para proteção das folhas de forma que o manuseio fosse fácil para o leitor. Mas, não foi fácil ler. Minha visão turvou, minha cabeça espiralou, meu coração tocou um bumbo.
Me rendo à Liberdade. Oh! Liberdade! Liberdade! Que ela abra suas asas sobre nós.
Núbia Nonato | 01/04/2014
Caríssimo Orlando Pimentel, por respeito a esse depoimento contundente, onde daqui enxerguei a menina e todo o seu sofrimento, seu desespero por temer sem nem ao menos entender. Por presenciar através da arma apontada os anos de chumbo. Mais de que um belo texto, foi o que mais me comoveu, foi o que mais me repugnou por retratar de forma visceral, uma época "feia", criança não tem o poder de organizar palavras difíceis e pomposas para desenhar tamanha atrocidade. Nos olhos da menina Shella Avellar me detive e confesso, lágrimas...Obrigado amigo pela lembrança, sigo daqui com toda a minha admiração e carinho pela menina que trouxe pelas mãos.
Maria Ester Fiqueiredo Alves | 01/04/2014
Eu também me recordo desta época porque tive parentes com os mesmos ideais de igualdade de seu pai.È poca difícil.Todos os dias passavam trens com soldados,pessoas se escondiam como se estivessem cometendo crime.Tenho orgulho de ter vc no meu face.Assim como Orlando Pimentel ,também chorei.A sua fala,seu modo de escrever revelaram nitidamente o que se passou naquela ocasião.Um grande abraço neste coraç]ão idealista,lutador e livre.Parabéns,Shellah Avellar!
Ronny Leal | 02/04/2014
Sei que é um período difícil, mas estou feliz por ter deixado esse texto sair de você. Ele não trás seus pedaços mais claros, mas também faz sua função de iluminar através da verdade. Força na peruca!
Rosana Bensiman | 03/04/2014
O que eu acabei de ler é um relato histórico auto-biográfico, um verdadeiro documento. Me emocionei com a narrativa da Shellah, e fico muito honrada pela oportunidade de ler e me transportar para as cenas que ela descreve, e para dentro das angústias que ela viveu. Ser filha de um rebelde deixou nitidamente nela muitas marcas, muitos nós na garganta, e um imenso orgulho de carregar e transmitir para todos os descendentes dela, o DNA da coragem e do senso de justiça e de igualdade de oportunidades para todos, que sempre vai se manifestar quando o Brasil estiver correndo risco de perder a liberdade. Isso me faz lembrar que eu mesma sou filha, porém filha de um democrata que caiu numa arapuca do destino, eu sou uma filha do outro lado da moeda. Filha de um funcionário federal que trabalhava no Estado do RJ, e foi adido para o Palácio do Planalto em 1958, antes da inauguração de Brasília, onde nasci e fui criada. Meu pai, mineiro criado em São João del Rei, foi pra Brasília com 25 anos de idade, estimulado pela oportunidade profissional de dobrar o salário (pra casar mais rápido com a minha mãe), trabalhando diretamente com o mineiro Juscelino Kubitschek dentro do Palácio do Planalto, e em seguida com o conterrâneo Tancredo Neves, amigo sanjoanense do meu avô. Quantos sonhos. Meu pai se encantou com o cargo, e se sentia privilegiado por "ajudar um cara genial" a construir a capital federal e testemunhar sua inauguração. Para ele, o Juscelino era um herói visionário. Em seguida, após a absurda e repentina renúncia de Jânio Quadros, o país se transformou em Parlamentarismo (por 3 anos, com Tancredo Neves como o primeiro Primeiro Ministro), com o objetivo de "garantir que João Goulart (Jango, o vice com tendências socialistas - que já era vice também do Juscelino), quando tomasse posse, tivesse o equilíbrio de sempre ouvir o Congresso, e não instituir uma ditadura soviética no Brasil". Três anos depois o Congresso votou a favor de um referendo, e a população votou pela volta do presidencialismo. Jango tomou posse e decepcionou. Se mostrou então um socialista sem posicionamento e sem competência administrativa, deixando a inflação chegar a absurdos 100%, passando depois a neutralizar o Congresso, e a fechar sindicatos trabalhistas (medida que um socialista democrata jamais tomaria). As forças armadas, com medo de que o Brasil se transformasse em Cuba, pediram apoio aos EUA, e veio o golpe militar, que foi apoiado inclusive pela Associação Brasileira de Imprensa (incrível, não?), muitos empresários, a metade do Congresso, uma grande parte da população, e a OAB. Muitos se lembram que a idéia era colocar ordem no chiqueiro, tirando o Brasil do caos instalado e da tirania que começava a se desenhar. Quando o general Castelo Branco tomou posse como presidente e começou a baixar os Atos Institucionais 1,2,3 e 4, se revelando um presidente de extrema direita, começaram a pipocar os movimentos rebeldes dos estudantes, dos artistas, dos jornalistas e dos sindicalistas, que se sentiram traídos (lógico, com toda razão). Depois tomou posse o general Costa e Silva, mais fascista ainda, que para acabar com as manifestações, baixou o AI-5. Começou então o pesadelo no país: a censura, as prisões dos rebeldes que a essas alturas já tinham alguns grupos pegando em armas e sequestrando embaixadores e políticos de direita, como moedas de troca para a soltura de presos políticos. Começaram então as perseguições, as torturas, as mortes, os desaparecimentos, os exílios, enfim, a ditadura, a escuridão total. E cadê o meu pai a essas alturas????
Meu pai estava lá, trabalhando naquele mesmo lugar que antes era o seu orgulho, e que agora tinha se transformado em seu pesadelo. Ele perdeu a liberdade (era vigiado e os telefones eram grampeados), não podia nem pensar em pedir transferência, confiava em poucos colegas de trabalho, e passou a ver ali dentro do Palácio, alguns amigos de outras salas não aparecendo pra trabalhar, e quando sorrateiramente ia saber o porque, descobria que eles tinham na verdade desaparecido para nunca mais, deixando viúvas sem sequer os corpos para sepultar. Silêncio, medo, que virou pavor, uma úlcera no duodeno que quase o matou várias vezes, e a sua gagueira genética que acabou piorando absurdamente: uma palavra de 3 sílabas que ele normalmente já falava em seis, se transformava em 12 sílabas. Na rua ele conversava olhando para os lados. Até curso para aprender a falar alemão, alguns funcionários do Palácio do Planalto eram "convidados" a fazer. Qualquer relação disso com o nazi-fascismo do Hitler e do Mussollini não era mera coincidência, era um recado proposital do regime ditatorial para os "palacianos" com tendências comunistas. Meu pai estava preso no ovo da serpente, trabalhando em sua mesa burocrática, e frequentando conosco as festas no Palácio da Alvorada. Ai dele que faltasse. Quando ele estava doente, a minha mãe ia sem ele, levando eu e meu irmão, para não atrair a atenção dos pelegos dedo-duros de plantão pra cima do meu pai. E para ela não ficar levando cantadas inconvenientes sem poder reagir (pois a ditadura dava esse poder aos fascistas fdp), nós e ela íamos com o "tio Levy", um judeu senador, melhor amigo do meu avô Isaac nos antigos tempos de Manaus. Com o passar do tempo, o meu pai passou a ser uma pilha de nervos dentro de casa, um atormentado sem esperança de sair daquela armadilha em que caiu nos bons tempos dos ideais "juscelinistas e tancredistas". Um mudo no meio dos abutres de mil olhos e mil ouvidos. Em casa, ele e a minha mãe conversavam na nossa frente, então eu e meu irmão crescemos super politizados, e assim como eles, odiando a ditadura com todas as nossas forças. Então, quando tudo parecia perdido pra sempre, o meu irmão teve uma artrite infecciosa no joelho, e febre reumática. Cirurgia, muitas internações, dor e sofrimento durante 3 anos (nesse período eu dormi mais na casa dos vizinhos do que na minha, para que meus pais dormissem com meu irmão na segunda casa dele, o hospital). Até que um belo dia fomos surpreendidos pelo veredito do ortopedista pediátrico: "Angelo, o único jeito do seu filho se livrar da Benzetacil mensal, é vc se mudar para uma cidade litorânea, por causa da ação do iodo da água do mar no ar. Vou fazer um relatório médico para vc apresentar junto ao seu pedido de transferência". Ufa! Finalmente o nosso habeas Corpus. Incrível, não? Nós fomos salvos da ditadura militar por uma febre reumática, ou melhor, uma "febre democrática" hahahaha!. Eu acho até que foi de tanto que a minha mãe rezava. No desespero ela misturava tudo, porque em Brasília tinha tudo: ela frequentava igreja católica, centro Kardecista, preces no Vale do Amanhecer, cultos na Legião da Boa Vontade, Rosa Cruz, controle induísta da mente, palestras do Prof Pastorino e do Prof de ioga Hermógenes, e até palestras clandestinas do Frei Beto, que ela frequentava arriscando a vida do meu pai, caso descobrissem isso no Palácio. A minha mãe era a versão feminina do meu revolucionário avô Isaac. E chegava em casa contando detalhes pra mim e pro meu irmão. A gente adorava. Ela e o meu pai sempre leram muito, então eu e o meu irmão herdamos o hábito. A minha mãe era a versão feminina do pai dela, o nosso avô Isaac, que era cheio de idéias revolucionárias. Ela era uma aquariana destemida, com uma mentalidade à frente dos do nosso tempo. Por ela trabalhar só duas vezes por semana como professora de inglês no curso Thomas Jefferson, ela tinha tempo pra exercer esse lado que o meu pai não podia, porque ele tinha que se preocupar em nos sustentar, e não acabar morto num porão. Que situação horrrível, não? Pois bem, nos mudamos pra Santos, pouco tempo depois foi extinto o AI-5, foi assinada a Anistia Ampla Geral e Irrestrita, aconteceu a tão cantada volta do "irmão do Henfil" (o Betinho, autor do Fome-Zero) e de todos os exilados, o meu irmão ficou curado, voltou o direito a votar nos congressistas e vereadores do MDB (o partido de oposição à ARENA dos generais), sem medo de ser perseguido e preso depois. Em seguida veio a eleição indireta do Tancredo Neves pelo Colégio Eleitoral, e em seguida emplacou a campanha das Diretas já do Ulysses Guimarães, que nos devolveu as eleições diretas para Presidente. Enfim, a democracia de uma vez por todas. A gagueira do meu pai voltou ao nível aceitável, e ele parou de falar olhando para os lados. Entrei para a faculdade em São Paulo, e logo me enfiei no grêmio acadêmico, me inscrevi na UNE, só assistia peças dos subversivos Augusto Boal, Teatro de Arena, Plínio Marcos e Vianinha. Me apaixonei pelo lendário médico Chê Guevara, mas desapaixonei rapidinho quando li nas minhas pesquisas que ele tinha se transformado num sanguinário e torturador ao longo da sua luta. Comecei a participar de passeatas no ABC paulista, mais precisamente em São Bernardo do Campo, e como ainda existia o SNI, o helicóptero do DOPS ficava sobrevoando a gente, principalmente porque o líder das passeatas era um metalúrgico sindicalista abusadíssimo, que tinha perdido um dos dedos num torno elétrico. Era o Lula (meu herói na época). Meus pais ficavam apavorados que eu levasse um tiro ou fosse presa, mas a minha mãe dizia que preferia uma tragédia dessas, do que ter filhos alienados e covardes, que lhe lembrassem a era medieval que a gente tinha vivenciado em Brasília. Daí, o meu pai tomava um sonrisal e ficava tudo certo. Quando o PT foi fundado, a gente só votava em petistas. Era a nossa forra. Pois é, passaram-se os anos, o Lula começou a revelar o seu verdadeiro "eu", e em casa nós passamos a detestá-lo, pois ele se mostrou um radical do contra, insuportavelmente suspeito, e logo começou a escancarar na mídia a sua paixão pelo Fidel, o pior ditador comunista das américas, e o mais cínico também, como todo líder comunista: Comunismo e pobreza para a população, e möet Chandon com caviar para os governantes. Bem... Resumo da ópera: ficaram marcas, mas nós crescemos seres humanos melhores, que conheceram de perto as abominações, para nunca esquecermos daquilo que jamais desejamos reviver. Assim como a Shellah, eu estou comemorando muito o desaniversário de 50 anos do golpe militar, e principalmente o seu fim. É a celebração da liberdade, pois quem viveu dentro da ditadura, como as nossas famílias, sente um gostinho especial pelo simples fato de hoje poder amar e odiar qualquer político, e de poder elogiar ou meter o pau neles a qualquer hora, e em qualquer lugar, inclusive na cara deles pessoalmente ou pela internet, sem medo de ir parar num calabouço. Isso não tem preço.
Essa foi a primeira vez na minha vida que eu toquei nesse assunto tão a fundo. Vc e a Shellah merecem receber honorários por essa sessão de terapia hahahahahaha! Como isso me fez bem! Um abraço bem apertado e carinhoso pra vcs!
Emocionante
Keli Vasconcelos | 04/04/2014 |
Shellah, emocionante o seu relato, este, o poema e a entrevista que fez. Não devemos jamais esquecer este momento tão obscuro de nosso país. Precisamos lembrar, sempre e sempre. Parabéns e muita Luz!
paulo salvador | 10/04/2014
Grato ao amigo que me enviou. Hoje as Comissões da Verdade aí estão para que você localizar esses acontecimentos na história. Há no seu depoimento muita indignação, mas também muito amor pelo pai, filha e por você mesma, ao enfrentar suas lágrimas e história. Assim, continue se amando e enfrentando. E ficando de frente para todas as lutas

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