Maracanã

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quinta-feira, 11 de novembro de 2010

O amor é uma armadilha



O amor é uma armadilha




Marie acordou pensativa naquela segunda-feira. Tinha lido um artigo dominical sobre a tese de um psiquiatra, Flavio Gikovate, especialista em relações amorosas, que fala da necessidade de saber ser feliz sozinho. Ela sempre pensou nisso, pois estava só, e feliz, há muitos anos. Sabia que o amor, preconizado como ainda romântico, tende a mudar de cara, nos tempos modernos. Marie lembrou de tantos momentos em que chegou a imaginar que pudesse existir amor verdadeiro entre um homem e uma mulher. Destacou um trecho da reportagem:

"O psiquiatra percebeu que a maior parte dos casais é formada por um generoso e um egoísta, numa confirmação do ditado que diz que opostos se atraem. Em seguida, embaralhou, a exemplo de Nietzsche, os juízos de valor contidos nessas duas categorias: “O egoísta não tolera frustrações, é mais estourado e procura sempre arrumar um jeito de levar vantagem, porque a vida dura não é parte de seu psiquismo. O generoso, por sua vez, não consegue dizer ?não? quando solicitado porque não sabe lidar com a culpa, sentindo-se envaidecido e superior por conseguir dar mais do que recebe”. Para superar essa armadilha em que “um reforça a pior parte da alma do outro”, diz Gikovate, é preciso ir além da generosidade. É a atitude do “justo”, cuja característica é dar e receber de maneira equilibrada. Ocupar-se de seus interesses sem se descuidar do outro. Ser compreensivo, sem passar a mão na cabeça de quem erra. Uma sutileza descrita na máxima de Nelson Rodrigues: “Não se apresse em perdoar. A misericórdia também corrompe”. Diante dos dilemas do amor moderno, em vez da ideia ultrapassada das “caras-metades”, Gikovate prefere a de “almas gêmeas”. Gêmeas bivitelinas, bem entendido. “Se tiver que optar entre o amor e a individualidade, fico com a individualidade.” Para esse entusiasmado defensor da independência entre os casais, no século 21, estar inteiro e feliz é uma condição anterior ao encontro amoroso.




Marie engendrou então sua armadilha e pegou o rato na ratoeira. Conseguiu se disfarçar para fazer seu namorado cair na sedução de um personagem que ela mesma criou. E se arrependeu. Mas já era tarde.

A doce e madura Marie conhecia bem os homens, pelo menos, vários lados deles, e os aceitava como eram. Não ia mudá-los mesmo, uma cultura milenar ocidental fez dos machos seres conquistadores, caçadores, infantis e enganosos. Como abrir mão dos seus pedidos de perdão quando pegos nos deslizes e traições? Foi assim que Marie começou a semana, lembrando que o amor é armadilha.


O mundo é palco de um jogo de encenação, os personagens andam soltos por aí, e os felizes, estes, como Marie, são criaturas que prezam seus sentimentos, correm atrás dos seus prejuízos, até caem de vez em quando nos alçapões da paixão, mas se levantam na preciosidade dos sonhos e dos perdões e seguem correndo em busca de dias e noites melhores, madrugadas afetuosas, manhãs de reencontros, abraços de aconchego e agradecimentos de doçura.

Marie tinha lados egoístas e um só lado generoso, concluiu. Era generosa consigo própria, e se dava chance de amar e ser amada, ainda que obedecendo regras culturais e sociais ultrapassadas, vivenciando compatível ciúmes da pessoa amada, mas, sem abrir mão jamais do seu amor próprio e do seu espaço individual.


Num piscar de olhos, ela se viu cercada por energia sólida, positiva, fez-se altiva, senhora de si, sabia que era pessoa inteira, com objetivos definidos, sabia-se racional, embora, e disso ela não escapou, ao sentir a dorzinha em seu coração ao perceber que poderia perder o sonho do amor, se não o perdoasse. Tal atitude lhe mostrou, de novo, que é preciso se emocionar com a vida, com as pessoas, com os fatos, e perceber que o amor, enquanto armadilha, prende e solta, num movimento infinito e inevitável de encontros e separações.


Marie entrou no táxi, e se viu pedindo que o motorista a levasse para bem longe, como se pudesse atravessar o oceano, como se cruzasse a ruas do seu bairro, em direção ao endereço onde a ilusão insiste em viver, bem ali, na beira do rio, ouvindo cantar os pássaros e vendo singrar os barcos mansos.


O coração de Marie, que pulava desde que ela se levantou, como se fosse explodir, então, repentinamente, se aquietou. A mulher compreendeu o quanto a vida a presenteava e fazia com que os amores novos floresçam a cada primavera. Marie parou de chorar, entendeu melhor a reportagem do psiquiatra. Ela seria sempre uma solitária feliz, capaz de amar alguém, mesmo que esse alguém não estivesse maduro. Talvez ela encarnasse no teatro da vida a tal generosa da história, e não a egoísta, como sempre achara que fosse.


Aparecida Torneros

Rio, 15 de junho de 2009










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