Maracanã

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terça-feira, 15 de junho de 2010

Textos antigos e inusitados que escrevi...Cida Torneros

Sexo no casamento e dividendos no trimestre



Aparecida Torneros





Leio notícia num jornal que fala sobre a obrigatoriedade do sexo no casamento.


A advogada Regina Beatriz Tavares da Silva, 44 anos, afirma que o cônjuge ou companheiro que se recusa a ter relações sexuais pode ser condenado judicialmente a indenizar o outro.


Ela explica que – “Uma das obrigações matrimoniais é a de os cônjuges manterem contato sexual. O fato de um dos cônjuges se negar a fazê-lo é motivo para um pedido de separação conjugal”.


Questionada sobre o motivo para um pedido de indenização, a resposta não poderia ser mais apropriada para os tempos atuais, de intensa manipulação financeira, onde não se desperdiça nada, nem a gota de amor que escorra pela bica mal fechada.


"- Sem dúvida. O descumprimento de todos os deveres conjugais, uma vez que exista dano, gera ao ofendido o direito de pleitear indenização".


Ora, penso eu, então com meus botões e convido a todos a refletirem junto comigo. Será que passaria pela cabeça dos julgadores de tais processos, questionarem os motivos pelos quais alguém se recusaria a ter relações sexuais com seu parceiro ou parceira de casamento? Poderia se considerar a idade avançada, por exemplo? Ou os impedimentos por ordem de saúde debilitada? Ou ainda o desinteresse gerado por mutações de aparência ou comportamento do companheiro ou companheira, que já não aparentasse aquele ar juvenil e excitante dos primeiros anos de convívio?


Talvez a lei, assim tão fria, ao ser postulada, possa se consolidar como uma nova artimanha para cálculos indenizatórios de esperteza ou golpe. Um casal que supostamente se une por amor, saberá que, quando este se dá por finito, nada mais resta a fazer a não ser enfrentar as agruras burocráticas da separação, com seus envolvimentos de caráter material e emocional, com dores de parte a parte.


Tentar, baseando-se em lei vigente que pode e deve ser discutida pela sociedade civil brasileira, pedir indenização por ter sido preterido na cama do parceiro, pode até levar o postulante de qualquer dos sexos a faturar algum que lhe garanta uma boa soma, mas, com certeza, não preencherá o vazio pelo desejo sexual não satisfeito.


Fica claro que trocamos sentimentos por valores. Quanto vale no mercado o beijo solicitado que alguém deixou de atender? E o abraço que faltou na hora da saudade, quando o parceiro ou parceira dormia pesadamente, sonhando talvez com outro amor?


A que preço seria possível vender um orgasmo que não aconteceu, na noite em que se desejou ser amado por alguém em quem já não despertamos a mesma volúpia de antes?

Por que um dia descobrimos que aquela voz que antes nos fazia tremer o coração, de repente, nos incomoda os ouvidos, e repete frases feitas que perderam a graça? Será que vou ter que pagar por isso? Ou será mais inteligente que me desligue desse relacionamento arrastado?



Absurdamente, me ocorre perguntar também, sobre a seguinte hipótese : quando, apesar dos anos passados juntos, um casal sente o mesmo sentimento intenso de prazer, temendo inclusive o mal olhado dos invejosos, não mereciam este esposo e esposa, então, da sociedade, um prêmio em dinheiro por conseguirem essa proeza matrimonial em tempos de tanto distanciamento e desamor?


Certo é que se legisla sobre o relacionamento porque o casamento é mesmo um contrato social entre partes adultas e responsáveis. Mas, há que se apelar para o bom senso, enquanto pessoas produzem e trabalham para construir relações de afeto e respeito.


O sexo, quando espontâneo, entre homem e mulher, casados ou não, deve ser sinônimo de felicidade.


Infeliz será aquele homem ou aquela mulher, cujo companheiro ou companheira, em dado momento, transforma sua relação, que deixa de ser amorosa para ser comercial.


Ele ou ela pagará uma dívida ou cobrará com juros a má sorte de não ter compreendido o fim do amor. E ainda, de não ter aproveitado a chance para sedimentar uma nova grande amizade depois do casamento, com o seu ex-cônjuge.


Sexo, ambos terão muitas novas chances, e não precisarão pagar por isso, se cultivarem encantos afetivos suficientes para não classificar suas relações amorosas como “plus” que rendem dividendos ao fim de cada trimestre.

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19/10/2005



Novos recados de Moscou


Aparecida Torneros


Vendo o tenente-coronel Marcos César Pontes, ao lado do dirigente russo Putin e do presidente brasileiro Lula anunciando a primeira viagem espacial de um brasileiro, senti-me na obrigação de falar sobre o Tony, Antônio Souza, um brasileiro de pouco mais de 20 anos, que viajou para a Rússia, há menos de uma mês.

Já não é pouco sermos amigos, de uns tempos para cá, com a diferença de idade, que soma exatamente a idade dele, mais 10. Sou carioca e ele, paulista. Sempre morei no Rio e ele em Sampa. Ou seja, tenho mais que o dobro do tempo desse menino no mundo. Podia ter sido sua mãe, ou tia, mas sou sua amiga. Nos conhecemos, por acaso, e a amizade surgiu como roubada do tempo-espaço.


Quando ele passou para a escola de Pirassununga, aos 20, comemoramos visitando o Museu do Ipiranga. Isso mesmo, programa cultural com aquele espécime raro, ávido por história brasileira, falante da língua alemã, rabo de cavalo às vésperas de sumir com o novo corte de cabelos para a escola militar, de onde pretendia sair piloto de caça.


Se fomos beber, depois da incursão pelo acervo da Independência, claro que para ele, naturalmente da geração saúde, só suco e água. A mim, coube a parte contaminada da bebida alcoólica, que ele, risonhamente perdoou, brindando até, pois era o seu futuro que eu queria saudar.


Um elogio me brotou: - Parece incrível que na sua idade, você fale um português tão correto. Eu me orgulho disso, seu vocabulário é extenso, concatenado, diferente da garotada que anda por aí.


Tony se foi para os estudos e eu segui minha vida. Trocamos correspondência aqui e alhures, respeitosamente, como cabe aos amigos fraternos. Continuamos amigos. Há cerca de dois meses, ele me ligou para contar a grande e destemida reviravolta da sua vida.

Inscreveu-se, passou, conseguiu, já organizou tudinho, abandonou a história de piloto, e ia viajar, em setembro, para a Rússia, estudar por quatro anos. Queria se despedir de mim. Vai se dedicar na universidade, em Moscou, ao tema "física aero-espacial". E esperou minha reação, num silêncio emocionado.


Como posso descrever o que senti?


Era o tempo atravessado. Nos anos 70, se um amigo de 23 anos me dissesse que ia pra a União Soviética, eu entenderia perfeitamente. Havia o mito do comunismo forte, havia o sonho do brasileiro perseguido pela repressão de direita. Havia uma esquerda crescente e pródiga.


Mas agora?


O que um jovem dessa idade, brasileiro criado em São Paulo, descendente de alemães, ex-aluno do Humboldt, estudante de Pirassununga, morador do Morumbi, falante de um português escorreito, de corpo trabalhado na malhação, leitor de literatura vasta, cheio de namoradinhas patricinhas, tendo um pitt-bul como grande companheiro, detentor dos olhos mais expressivos que um menino brasileiro culto possa ter, o que, meu Santo Antônio dos Pobres, esse rapaz iria fazer tão longe e num lugar onde o sonho parece ter acabado?


Parabenizei-o pela coragem e desejei felicidades na realização do seu novo sonho. Mandei alguns presentinhos, um livro com poemas de Mayakovsky, pedi que assistisse "Dr. Jivago", e que revisse "Adeus, Lênin", descartei pelo menos 30 anos do meu corpo, e , em homenagem ao Tony, esse "Antônio brasileiro", pude me sentir com a idade de outros tempos.


Solicitei, emocionada, que me escreva, descreva e ressuscite em mim o ideal dos povos sofridos, do eterno terceiro mundo, que têm, na sua mocidade, um grande esteio de sonhos e de futuras conquistas.


Vejo o meu amigo Tony embarcando no sonho dos seus antecessores, os jovens da minha geração, como sendo aquele passageiro que sobrou. Deve estar vibrando por lá com o vôo do Tenente Marcos. Depois eu conto o que ele me contar nos próximos tempos, quando me chegarão, atrasados pelo menos algumas décadas, novos recados de Moscou.


Aparecida Torneros é jornalista


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Metralhados no baile funk


Jovens foram mortos num baile funk, em Santa Cruz, no Rio de Janeiro, no último fim de semana, em conseqüência dos disparos acidentais de uma metralhodora que um traficante presente ao envento, descuidadamente, deixou cair no chão.


Talvez o baile estivesse mesmo muito animado, como geralmente acontece com essas festas para onde acorrem meninos e meninas como esses que foram barrados no baile do futuro, com idades entre 15 e 16 anos, em plena euforia da juventude que busca divertir-se, que é induzida a movimentar-se em direção a fazer qualquer coisa que lhes preencha o tempo e lhes anestesie os sentidos.

O baile aconteceu na favela de Antares, devia estar lotado, imagine-se o misto de prazer, alegria, loucura sacolejante, de corpos suados em adolescentes de sorrisos repletos de inebriante esperança.


Há também feridos que sobreviveram à fatalidade, além de testemunhas das dramáticas cenas que precederam a célebre frase: acabou a festa! Mas que festa? Será a este tipo de festa, com direito à segurança "insegura" de metralhadoras clandestinas que a nossa juventude das periferias têm direito como única opção de cultura e diversão?

Enquanto, no centro do poder brasileiro, se discute a queda da cobrança da CPMF, ou se especula sobre a novela do presidente do Senado, ou ainda, um Ministro assume a Defesa dos interesses nacionais, camuflando-se em operações militares ou impondo-se como um austero gestor de procedimentos corretivos para que se reponha os aviões nos trilhos, ou melhor, os trens da desordem, nas rotas seguras, vê-se que os "bondes" dos jovens funkeiros parecem mesmo é estar à deriva.


Quem deles cuida nas reuniões extensas que nos gabinetes das autoridades lhes assegure educação de qualidade e acesso ao trabalho legal? Quem deles se apercebe quando se deparam com seus próprios conflitos proprios da idade, mas se espelham em violência continuada para justificar os heróis mais próximos da sua realidade cotidiana,ou para serem cooptados pela marginalidade da droga? Quem deles se apieda em sua oscilação de humor e expectativas, na fuga, na desesperança, na vida curta, no baile da vida, interrompido com rajadas de metralhadoras?

O funk, embora de origem norte-americana, cresceu no Brasil, em paralelo ao final dos anos de chumbo da ditadura agonizante. Na década de 70 surgiram as primeiras equipes de som no Rio de Janeiro, como a Soul Grand Prix e a Furacão 2000, que organizavam bailes dançantes. A partir dos anos 80, o funk no Rio foi influenciado por um novo ritmo da Flórida, o Miami Bass, que trazia músicas mais erotizadas e batidas mais rápidas. A partir daí, os bailes começaram a atrair cada vez mais pessoas e foram lançadas músicas em português. As letras retratavam o cotidiano dos freqüentadores: abordavam a violência e a pobreza das favelas.
Na época, o funk começou a falar sobre as drogas, as armas, os comandos, mas artistas desta fase, como Claudinho e Buchecha, evoluíram para outros tipos de tema. Ao mesmo tempo que as músicas abordavam o cotidiano das classes baixas, alguns bailes começaram a ficar mais violentos e ser palco de "brigas de galeras", onde pessoas de dois lugares dividiam a pista em duas e quem ultrapassasse as fronteiras de um dos "lados", era agredido pela outra galera. Houve a pressão da polícia, da imprensa e a criação de uma CPI na Assembléia do Rio de Janeiro em 1999 e 2000. As músicas se tornaram mais dançantes e as letras, mais sensuais. Esta nova fase do ritmo, o new funk, se tornou sucesso em todo o país e conquistou lugares antes dominados por outros ritmos, como o Carnaval baiano.


Obras milionárias custeadas pelo PAC vão intervir em comunidades cariocas como Rocinha, Manguinhos e Alemão, o que levará melhores condições de vida e acesso às políticas públicas nessas localidades, mas, há um número enorme de outras necessitando aporte de recursos e decisão política, nas periferias das grandes cidades brasileiras. O funk tem se firmado como o ritmo mais ouvido e o mais influenciador da juventude carioca. Do morro ao asfalto o funk conseguiu de uma maneira inusitada integrar as classes cariocas, tão grotescamente divididas na geografia da cidade. Ao falar sobre a realidade e atual situação do Rio de Janeiro de maneira irreverente e muitas vezes criminosa, curiosamente o caiu nas graças da massa jovem.


Mas, essa massa jovem, desprotegida e esquecida, ainda não caiu nas graças do poder constituido, ou da educação institucional garantida. A juventude funkeira encontra-se à mercê do descaso mas continuará cantando e dançando ao repetir o refrão: - "Eu só quero é ser feliz, andar tranquilamente na favela onde eu nasci, e poder me orgulhar e ter a consciência que o pobre tem seu lugar".

Aparecida Torneros,  RJ, 2006

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