Muitos amores... ( para uma cena que vivi em Santiago de Compostela)
na descida da ladeira, naquela cidade mística, sob o reflexo do sol, atrás da vidraça de um café, em pleno século XXI, Marie observou que um homem, contritamente, escrevia uma carta.
ela parou para contemplar a criação que mais parecia a volta aos velhos tempos, numa atitude solitária e romântica. para quem ele dirigia seus sentimentos naquele momento? seria uma carta de amor?
o missivista parecia envolvido de tal modo com seu gesto que nem percebia a mulher que estava parada, ali fora, envolvida com o clima etéreo da imaginação que corria solta... o homem grisalho, rosto que lembrava um dos seus muitos amores, Marie entendeu que podia ser uma projeção do seu pensamento, vontade que tinha de entender as palavras de alguém que lhe escrevesse uma carta para contar que os sentimentos não se perdem, porque eternizam os sonhos dos amores que chegam e depois se vão...
a mulher deixou que seu pensamento voasse, o mundo lhe trazia dimensões inesperadas, de vez em quando, como aquela, quando era possível entender que alguém pudesse organizar idéias e colocá-las num papel, à moda antiga, para depois, certamente, dobrar com cuidado as folhas recem escritas, aconchega-las num envelope e deixar que seguissem seu caminho para serem lidas nas mãos de um outro ser, bem longe daquele lugar.
Marie sabia que havia lugares ainda tão distantes do seu coração e da sua alma, por onde passaria brevemente, e onde, teria que reencontrar seus sentimentos mais profundos, para trocar de bem com seu próprio coração, ultrapassar os limites dos medos que a angustiavam, nos últimos meses.
dar de cara com a cena do homem que escrevia a carta, foi, para Marie, um aviso de simultaneidade dos amores que se acham perdidos nos caminhos dos peregrinos inquietos, daqueles que buscam achar as razões mais profundas para seus sentimentos mais superficiais. ela era uma dessas criaturas, fazia parte da legião dos que sabem reconhecer amores e não os renegam, apenas os vivem, em sua plenitude, aceitando suas efemeridades e suas eternidades, se assim estava escrito...
Marie foi interrompida por uma amiga, que a tocou com sensibilidade, lembrando-a que devia prosseguir a caminhada em direção àquele templo onde ia orar pela redenção de tantos amores sepultados e por um novo amor em fase nascente...
ao descer a ladeira, sem olhar para trás, Marie guardou nos olhos a imagem do homem que escrevia sua carta em contrição, desejou que a tal carta chegasse ao seu destino e levasse uma linda mensagem de amor, um libelo de reencontro, uma notícia bondosa para alguém que a estivesse esperando, por muito tempo, como um prêmio.
os olhos de Marie denunciaram sua emoção, ela chorou baixinho, sem entender ainda que os amores, muitas vezes, fazem chorar, quando se aproximam da tal felicidade e do tal grande encontro com que todos sonham durante suas peregrinações pelo caminho místico da busca do verdadeiro e único amor, o tal amor definitivo, o tal amor maior, o grande amor das nossas vidas...o dela, ela já sabia, a esperava, do outro lado daquela cidade, nem tão longe e nem tão perto, questão de caminhar mais um pouco e chegar até Antoine, que lhe abriria os braços para amparar a viajante cansada de tantos amores...
Cida Torneros
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