Maracanã

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domingo, 4 de outubro de 2009

Artigo do jornalista Vitor Hugo Soares, sobre Mercedes Sosa, reproduzido do site Bahia em Pauta

No dia 11 de novembro de 2007 (o Bahia em Pauta ainda não estava nem em gestação), escrevi para publicação no espaço que disponho há anos, todos os sábados, no Blog do Noblat, um artigo intitulado “Ela (Mercedes Sosa) e elas”, que foi publicado tanbém no Ponto de Vista, espaço de Opinião do jornal Tribuna da Bahia.O texto fala de um momento político na América Latina marcado pela intensificação da participação feminina na política e no poder , que coincidia com o retorno aos palcos, no México, depois de longa ausência por motivos de saúde,da grande cantora argentina que morreu na madrugada deste domingo.


Quase dois anos depois o texto vai republicado. Agora no Bahia em Pauta, no dia da partida de Mercedes. Vai a título de informação deste site-blog, mas igualmente de tributo deste editor a uma das artistas que mais contribuiram para o amor do jornalista pela música e paixão pela América Latina.

Com um beijo de saudades no coração de La Negra. (VHS)



ELA(MERCEDES SOSA) E ELAS


Vitor Hugo Soares (24/11/2007)






Miro a Cordilheira dos Andes e os altiplanos do México, enquanto no Atlântico Sul o tucano Fernando Henrique Cardoso sai do silêncio temporário e abre o bico em nova arrelia contra o seu sucessor no Palácio do Planalto, Luiz Inácio Lula da Silva, ao sugerir que o governante petista detesta a educação, “a começar pela própria”. O novo bafafá já se propaga pelos blogs – a começar por este do Noblat -, com a dura resposta do ministro petista Tarso Genro, e a briga, nem sempre em tons exemplares, promete ser das boas.



Acontece que ando meio saturado dos freqüentes ataques de ciumeira dessa relação tumultuada de amor e ódio entre FHC e Lula. Desvio a atenção para o suplemento cultural da edição “on-line” do jornal chileno “La Tercera”. Ali encontro uma notícia que espero há quase 10 anos: a cantora argentina Mercedes Sosa superou finalmente a enfermidade que a obrigou a um longo afastamento dos palcos e volta a espalhar pela América Latina, o seu canto inimitável, na série de apresentações pelo continente iniciada ontem na Cidade do México.

Em seu giro , Mercedes apresenta o espetáculo “Gracias a la Vida”, considerado pela crítica como um canto de louvor e entusiasmo renovado de quem sai de depressivo e prolongado fundo de poço. A amiga de Milton Nascimento e dos estudantes pode soltar o vozeirão outra vez em “Como la cigarra”, para mim uma de suas mais emblemáticas e comoventes canções.


“Tantas veces me mataron, tantas veces me mori,/ Sin embargo estoy aqui, resucitando”. Imagino à distância essa música se espalhando pela noite da capital mexicana neste final de semana, como tantas vezes vi os garotos e adultos de Buenos Aires fazerem na saída de teatros e casas de discos, quando a artista estava no auge. E como eu próprio me vi fazendo nos anos 70, em meu primeiro show com a argentina de Tucuman, em histórica noite no Teatro Castro Alves, em Salvador.


“Cantando al sol, como la cigarra/ después de um año bajo la tierra/ igual que sobreviviente/ Que vuelve de la guerra”. Desta vez, o mergulho de Mercedes foi mais longo do que uma simples estação. Aparentemente também, muito mais dolorido para a sua alma sensível.


Nos últimas décadas ouvi muito e vi de perto algumas vezes está que é uma das minhas cantoras preferidas. A última vez que estive próximo dela foi há cerca de dois anos, em Buenos Aires, quando Mercedes compareceu a uma apresentação do espetáculo em que o cantor e compositor Victor Heredia celebrava 30 anos de carreira em um teatro de Corrientes, no coração da capital portenha. Foi uma noite inesquecível, até mesmo pelo que deixou de acontecer, como a prevista canja da cantora.


Na platéia, Mercedes demonstrava profundo abatimento físico e parecia extremamente deprimida. Não subiu ao palco. Heredia pediu desculpas ao público e explicou que ela estava “muito gripada e afônica”, impedida de cantar. Agradeceu a presença da cantora no teatro, mesmo doente, e a casa quase vem abaixo de aplausos. Guardei comigo a impressão de que, no corpo e na mente da artista, se escondiam bem mais que um simples resfriado. E conservei a esperança de que, fosse o que fosse, seria passageiro.


Em sua ressurreição, constato agora com alegria que Mercedes Sosa não só voltou à superfície como manteve o prumo. De longe, a impressão é de que ela segue íntegra e fiel ao que sempre foi ao longo de toda a carreira. Quinta-feira, na véspera da primeira das três apresentações que fará no México – a última será neste domingo em Guadalajara –, convocou jornalistas para uma entrevista coletiva e aproveitou para fazer uma convocação política às conterrâneas da revolucionária Fryda Kallo: “As mulheres deste país devem sair a ganhar eleições, porque sabem o que custa manter a casa e manter o trabalho”.



Aos 72 anos, a intérprete que fez de “Coração de Estudante” um hino também da América Latina, chama a atenção para o bom momento das mulheres na política atual. Citou fenômenos como as mandatárias do Chile, Michelle Bachelet; da Alemanha, Ângela Merkel, e de sua conterrânea Cristina Kirchner, que tomará posse na Argentina nos próximos dias. Até ontem, pelo menos, Mercedes Sosa parecia desconhecer que o presidente Lula começa a colocar na fila dos nomes fortes à sua sucessão – o da ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Roussef.


Em sua passagem pela Cidade do México, a caminho de Santiago do Chile e de outras cidades da América Latina onde levará o show Gracias a la Vida, Mercedes Sosa rende um tributo especial aos estudantes mortos em 1968, no trágico massacre na Praça das Três Culturas de Tlatelolco, ocorrido em 2 de outubro de 1968, dias antes do início dos Jogos Olímpicos do México. Segundo grupos de direito humanos, o massacre deixou uns 300 mortos, a maioria estudantes, como registrou na época a premiada repórter Oriana Falacci nas reportagens que produziu dentro do olho do terremoto.


A cantora argentina fala da enfermidade, que a obrigou a recolher-se por longa temporada: “Cheguei a estar muito grave, em 97 os médicos entravam e saiam de minha casa sem saber o que eu tinha”. Mas aproveita para desmentir a quem anda espalhando por aí que este seja o seu giro de retirada dos palcos: “Nada disso”, reage. Bemvinda, Mercedes! Siempre.


Vitor Hugo Soares é jornalista. E-mail:vitors.h@uol.com.br

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