Manoelita chegava à casa dos sessenta, em plena atividade profissional. Corria, todos os dias, de um lado para o outro, no afã de resolver tantos probleminhas corriqueiros, envolvendo-se até a raiz dos cabelos aloirados e tingidos mensalmente, com tarefas cobradas pelo chefe, pela empresa, pelos clientes, pelos colegas, por fontes inesgotáveis que a deixavam sentir-se sempre uma devedora contumaz. Como se não bastasse, havia ainda a dívida daquele infeliz imposto de renda de ano anterior, parcelada, depois de muita conversa fiada no escritório da Receita Federal, diante de um funcionário barrigudo que a fizera sentir-se uma mal pagadora cretina, mesmo sabendo que era apenas mais uma brasileira enforcada por compromissos financeiros alheios à sua vontade consciente.
Mas, não era só isso, não. Havia a família. Pais idosos que precisavam da sua constante assistência. Filho criado, trabalho dobrado, preocupação triplicada, questionamentos sobre o futuro de um jovem trabalhador, estudioso, mal inserido no mercado de trabalho, com clara dificuldade de manter padrão de vida ideal para quem inicia vida dividida com mulher jovem estudante, sem emprego, bonita e carinhosa, cujos pais seguiam pagando os custos da universidade particular.
Tinha também aquela coisa de tentar equilibrar o orçamento com suas vaidades supérfluas. Aquela bolsa sempre sonhada e nunca adquirida de uma grife bárbara, que ela desejava salivando de vontade, observando a vitrine da loja do shopping, prometendo a si mesma, que compraria quando saísse a primeira parcela do décimo terceiro. O consórcio do carro, prestação atrazada, ficava no topo dos probleminhas a serem solucionados sempre no mes seguinte. A obra da casa, dinheiro que parecia escoar pelo ralo, cada vez que se via nalguma loja de material de construção, às voltas com o preço do cimento, da areia, dos ladrilhos e azulejos, descobrindo-se mesmo uma incompetente para administrar esse mundinho aparentemente tão masculino, onde ela era , sem dúvida alguma, peixe fora dágua, pronta pra desistir do feito, como uma pobre menina desamparada, diante do desafio de resolver sozinha cada pedaço da própria vida.
Manoelita tinha alguns outros sonhos irrealizados. Empurrava com a barriga, pois concluía sempre que todas as pessoas desse mundo estavam como ela, adiando o que era imperativo adiar, e vivendo como era possível viver.
Um dia, reecontrou um antigo amor. Acertaram alguns ponteiros, no auge da maturidade, ambos, remanescentes de casamentos anteriores, desfeitos no decorrer da convivência sufocante, que leva os casais para bem longe do sonho do amor pelo par perfeito. Decidiram que se veriam sempre que pudessem para passar horas felizes, sem tirar a liberdade um do outro.
Podia parecer impessoal essa coisa de não ter compromisso. Saudade, eles podiam matar com as conversas via computador, já que moravam em cidades distantes. A tecnologia era sua aliada. Tinha a web câmera. Podiam ver-se, trocar carícias on line, divertir-se no virtual, colocar os papos em dia, lamentar-se da vida corrida, de parte a parte. E, nos momentos possíveis, atravessariam as fronteiras das estradas, passariam momentos deliciosos, juntos, na mesma cama, de preferência, a do quarto dela, para que o cheiro dele permanecesse ali, por longo tempo, até o próximo abraço real.
Entretanto, faltava alguma coisa, pensou, nas noites solitárias, o calor dele não estava engarrafado, do jeito que pudesse guardar em algum lugar precioso, e dispor de tal artifício para aquecer as madrugadas insones.
Insinuou que precisava de um consolo para vencer a sensação de abandono, quando a presença dele fosse uma necessidade urgente.
O tempo passou. Tudo continuou como dantes no quartel de Abrantes. Conversas na internet, intercaladas de visitas esporádicas. Iam levando. O afazeres nas suas vidas aconteciam rotineiramente, e se telefonavam, de vez em quando, para trocar algum afeto traduzido em palavras sutis.
Até que o porteiro avisou da chegada de uma caixa via Sedex. Um presente dele, ela exultou. Um mimo que viajou de avião na sua direção trazendo prova de ligação feliz. Abriu o pacote. Desembrulhou a embalagem. Não era uma grande surpresa , mas era mesmo um consolo. De borracha, moderno, bem fabricado, com as sinuosidades absurdamente imitadoras da realidasde. Um objeto de consumo sexual, de coloração humana, uma prodigiosa invenção fabricada por engenhoos técnicos que se esmeram em atender ao gosto dos fregueses da sensualidade.
Manoelita pegou o seu novo brinquedinho com certo pudor, a princípio.
Acarinhou suas curvas, quase em reverência.
E pôs-se a sentir um misto de prazer e conformação.
Melhor ter a certeza de que o mundo deu tantas voltas e aprimorou as relações humanas. Era dele aquele gesto de desprendimento. Era sua fantasia. Era a forma moderna de estar presente dentro dela, além do espaço e do tempo, era uma medida acertada.
Manoelita seguiu a vida. Agora, apesar de tanta correria, sabia que a esperava, em casa, algo a ser compartilhado por seus desejos solitários, com a memória dele, o homem capaz de oferecer-lhe, de bom grado, a oportunidade de aquietar os sentidos, utilizando um presente inesquecível.
Ela sabia e tinha mesmo a certeza de que, qualquer dia desses, ele tocaria a campainha, diria um "oi", entremeado de abraço apertado, beijo de língua, ofertando-lhe um falo vivo.
Sonhou então, todas as noites, com algo pulsando a buscar suas entranhas, que, cansadas da fricção mecânica, queriam mesmo era sentir o consolo do calor do homem amado, num gesto eterno de entrega humana. Em meio a vida corrida e louca, seria de bom tom que se permitissem aceitar que precisavam um do outro, mais do que admitiam.
Mas, não era só isso, não. Havia a família. Pais idosos que precisavam da sua constante assistência. Filho criado, trabalho dobrado, preocupação triplicada, questionamentos sobre o futuro de um jovem trabalhador, estudioso, mal inserido no mercado de trabalho, com clara dificuldade de manter padrão de vida ideal para quem inicia vida dividida com mulher jovem estudante, sem emprego, bonita e carinhosa, cujos pais seguiam pagando os custos da universidade particular.
Tinha também aquela coisa de tentar equilibrar o orçamento com suas vaidades supérfluas. Aquela bolsa sempre sonhada e nunca adquirida de uma grife bárbara, que ela desejava salivando de vontade, observando a vitrine da loja do shopping, prometendo a si mesma, que compraria quando saísse a primeira parcela do décimo terceiro. O consórcio do carro, prestação atrazada, ficava no topo dos probleminhas a serem solucionados sempre no mes seguinte. A obra da casa, dinheiro que parecia escoar pelo ralo, cada vez que se via nalguma loja de material de construção, às voltas com o preço do cimento, da areia, dos ladrilhos e azulejos, descobrindo-se mesmo uma incompetente para administrar esse mundinho aparentemente tão masculino, onde ela era , sem dúvida alguma, peixe fora dágua, pronta pra desistir do feito, como uma pobre menina desamparada, diante do desafio de resolver sozinha cada pedaço da própria vida.
Manoelita tinha alguns outros sonhos irrealizados. Empurrava com a barriga, pois concluía sempre que todas as pessoas desse mundo estavam como ela, adiando o que era imperativo adiar, e vivendo como era possível viver.
Um dia, reecontrou um antigo amor. Acertaram alguns ponteiros, no auge da maturidade, ambos, remanescentes de casamentos anteriores, desfeitos no decorrer da convivência sufocante, que leva os casais para bem longe do sonho do amor pelo par perfeito. Decidiram que se veriam sempre que pudessem para passar horas felizes, sem tirar a liberdade um do outro.
Podia parecer impessoal essa coisa de não ter compromisso. Saudade, eles podiam matar com as conversas via computador, já que moravam em cidades distantes. A tecnologia era sua aliada. Tinha a web câmera. Podiam ver-se, trocar carícias on line, divertir-se no virtual, colocar os papos em dia, lamentar-se da vida corrida, de parte a parte. E, nos momentos possíveis, atravessariam as fronteiras das estradas, passariam momentos deliciosos, juntos, na mesma cama, de preferência, a do quarto dela, para que o cheiro dele permanecesse ali, por longo tempo, até o próximo abraço real.
Entretanto, faltava alguma coisa, pensou, nas noites solitárias, o calor dele não estava engarrafado, do jeito que pudesse guardar em algum lugar precioso, e dispor de tal artifício para aquecer as madrugadas insones.
Insinuou que precisava de um consolo para vencer a sensação de abandono, quando a presença dele fosse uma necessidade urgente.
O tempo passou. Tudo continuou como dantes no quartel de Abrantes. Conversas na internet, intercaladas de visitas esporádicas. Iam levando. O afazeres nas suas vidas aconteciam rotineiramente, e se telefonavam, de vez em quando, para trocar algum afeto traduzido em palavras sutis.
Até que o porteiro avisou da chegada de uma caixa via Sedex. Um presente dele, ela exultou. Um mimo que viajou de avião na sua direção trazendo prova de ligação feliz. Abriu o pacote. Desembrulhou a embalagem. Não era uma grande surpresa , mas era mesmo um consolo. De borracha, moderno, bem fabricado, com as sinuosidades absurdamente imitadoras da realidasde. Um objeto de consumo sexual, de coloração humana, uma prodigiosa invenção fabricada por engenhoos técnicos que se esmeram em atender ao gosto dos fregueses da sensualidade.
Manoelita pegou o seu novo brinquedinho com certo pudor, a princípio.
Acarinhou suas curvas, quase em reverência.
E pôs-se a sentir um misto de prazer e conformação.
Melhor ter a certeza de que o mundo deu tantas voltas e aprimorou as relações humanas. Era dele aquele gesto de desprendimento. Era sua fantasia. Era a forma moderna de estar presente dentro dela, além do espaço e do tempo, era uma medida acertada.
Manoelita seguiu a vida. Agora, apesar de tanta correria, sabia que a esperava, em casa, algo a ser compartilhado por seus desejos solitários, com a memória dele, o homem capaz de oferecer-lhe, de bom grado, a oportunidade de aquietar os sentidos, utilizando um presente inesquecível.
Ela sabia e tinha mesmo a certeza de que, qualquer dia desses, ele tocaria a campainha, diria um "oi", entremeado de abraço apertado, beijo de língua, ofertando-lhe um falo vivo.
Sonhou então, todas as noites, com algo pulsando a buscar suas entranhas, que, cansadas da fricção mecânica, queriam mesmo era sentir o consolo do calor do homem amado, num gesto eterno de entrega humana. Em meio a vida corrida e louca, seria de bom tom que se permitissem aceitar que precisavam um do outro, mais do que admitiam.
A lógica do acaso
"Busco simplesmente viver, aceitando o acaso como o grande formador de toda história"
A lógica do acaso
Deve ter sido mesmo por acaso que Manoelita percebeu certo sentido de enveredar pelo corpo dele, como um bólido de amor, um fogo fátuo, um cometa gasoso, buscando o beijo e o cheiro. Casualmente, ele chegou voando na vida dela. Vinha de um tempo longínquo, um extra-terrestre, talvez, ela refletiu, seria um espírito brincalhão tomando formas de parceiro disponível? Fato é que se encontraram. Se perderam... Tornaram a se ver. Aí, um carinho especial aconteceu entre eles. Havia certa cumplicidade a dizer: - não me prenda, mas também não me solte... coisa esquisita, passível de confundir qualquer cabeça pensante... mas, ela e ele souberam logo que tudo era um acaso, e não deviam complicar nada... De repente, um olhar para o alto, lá estava Manoelita, na sacada antiga, como uma donzela de filme romântico, a acenar para ele, que seguia... adentrando num carro, dando até logo... Voltaria? Ela não soube responder... Afinal, deixariam com o acaso... teriam ou não um caso? Por via das dúvidas, ela buscou qualquer coisa pra fazer, pegou a agulha de crochê, teceu pontos de trancinha... danou a fazer laços, desenhando arabescos, desenhando flores onde antes só havia linha. Mãos ágeis, pensamento solto, ela foi se acalmando. Por acaso, nas ruas, milhares de pessoas caminhavam se cruzando sem nunca se terem visto de verdade. Achá-lo, já tinha sido um grande acaso... Perdê-lo, entretanto, concluiu, dando um nó na renda que crescia em suas mãos, seria, agora, um grande azar... Voltou-se para si mesma, não ia complicar as coisas, afinal, não eram nada um do outro... parecia que fugiam mesmo do que se podia chamar de laços fortes... Pegou de novo o artesanato... Puxou a linha verde como a esperança das florestas... Desmanchou... Precisava tecer com menos aperto... Pontos largos, respirantes, soltos... Duas teimosas lágrimas insistiram em brotar no canto dos olhos maduros... Queria mesmo que ele, qualquer hora dessas, voltasse aos seus beijos e abraços... Aí, chorou copiosamente, mas não de tristeza... era emoção pura... Ele estava tão dentro dela ainda... a voz dele era tão evidente nos seus ouvidos... ecoava, reverberando a ternura com que a presenteara horas antes... Já não importava muito se voltasse... agora... o que contava, no fundo, era o mistério do acaso no mundo... Ela se deixou adormecer no sofá onde ele a beijara tanto. Dormiu profundamente. Entregou os pontos... Aceitou a lógica do acaso... Por acaso, sonhou com ele...
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