Maracanã

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domingo, 26 de julho de 2009

Homenagem ao dia dos avós: conto "Suas orelhas ainda queimam"


Um dia, ela pensou que, na velhice, iria descansar de tanta luta. Tinha tido, durante toda a vida, muita lida, com a dureza do dia a dia, os serviços de casa, a cozinha, as crianças crescendo, o marido reclamativo, a louça se acumulando na pia. Bem, por que lembrar disso agora, passados tantos anos?

Tudo tinha ficado para trás. Os filhos já são quase avós agora, com sua prole em torno dos 20 anos, menos o temporão, o Tavinho, seu netinho mais encantador. Como ela poderia imaginar que veria seus próprios netos na mocidade, tentando entender seus comportamentos incrivelmente estranhos para os conceitos de vida que ela aprendera a valorizar? Ela tenta se adaptar aos novos tempos e procura não ser uma avó desagradável, com incompreensões.

Clarinha, por exemplo, sua netinha de 15, está infestada de peircings. Pelas orelhas, nariz, língua, umbigo, e , só Deus sabe, onde mais. O Bruno, um rapaz de aparência forte e dentes lindos, enfeitou-se com tatuagem no braço, como aqueles antigos marinheiros, e sapecou uma robusta serpente de língua comprida pronta para o bote. Mas, a doce Luana, essa sim, lembra as meninas do passado, tem olhos tranqüilos e gestos calmos. Toca piano, é plácida, romântica e só tem 12 anos. Talvez mude, e disso ela tem medo. Como proteger a frágil menina do mundo agressivo que tem pela frente?

Hoje, morando sozinha, ela, com seus 70, se acha vigorosa ainda. Tem fôlego para ouvir os filhos, tantas queixas e lamúrias. São os telefonemas noturnos, quando eles se lamentam e ela ouve, consola, tenta fazê-los sorrir um pouco. Dá força e convida sempre, filhos e netos para comerem seu bolo de chocolate. Não há tristeza deles que ela não cure com a sua especialidade coberta de calda. Seu maior prazer é ver quando eles vão se acalmando, enquanto saboreiam a gulodice saciando de doçura seus corações inquietos.

Também, nas manhãs de sol, ela caminha para desenferrujar as juntas e aproveita o tempo para rezar por filhos e netos. Ora com freqüência e com saudades, pela alma do marido "reclamão". Se ainda o tivesse por perto, teria, pelo menos, um ombro amigo, na calada da noite, para recostar, quando as orelhas estivessem quentes.

Um dia, ela tinha sonhado com isso, reuniria toda a família em torno de um grande bolo de chocolate para o seu "bota-fora". Era chegada a hora da viagem dos seus sonhos: ia à Grécia, depois de economizar a vida inteira. Finalmente esse dia chegou. Luzia está bonita, produzida, os cabelos alinhados em coque, o terninho bem cortado a transforma em senhora elegante. Prepara-se para a tal viagem. O bolo foi providenciado pelo telefone. Permitiu-se encomendar a goluseima e dispensar-se do forno desta vez.

Os preparativos foram tantos, os filhos e netos se sucederam na fila das encomendas, das recomendações, dos pedidos. Ela iria de táxi, combinou com todos que não queria ninguém no aeroporto. Seu grito de liberdade. Uma mulher vivida e sozinha que parte para a viagem sonhada. Muitos beijos, abraços, promessas de telefonemas, Luzia seca as lágrimas e parte.

Horas mais tarde, a bordo do avião, com a cabeça recostada, tentando acomodar-se à nova realidade, suas orelhas ainda queimam. Tavinho, o neto caçula, não pediu nada, nem um brinquedinho, mas encostou sua boquinha melada de menino de três anos bem no ouvido direito da avó e disse assim, em tom pedinte e choroso: - Vó, o bolo de chocolate que você me deu agora tá muito ruim Tudo bem ,eu entendo, você tava com pressa de viajar, não é? Volta logo dessa tal de "Gréchia" e aprende de novo a fazer aquele bolo que eu adoro!

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