CRÔNICA/VIDA E ARTE
TODOS NÓS,MUITOS ANOS DEPOIS… ( publicado no site Bahia em pauta, em 5 de julho de 2009)
Aparecida Torneros
Terminei minha sexta-feira, tomando chope na Lapa carioca, já noite alta, aliás, no sábado entrante, passava da meia noite, e eu estava ali, com duas outras “cinderelas”, amigas de profissão, ambas ex-alunas minhas, nos tempos, mais de 20 anos atrás, em que dava aulas de jornalismo, na universidade,e me tornava referência para meninas como elas, cheias de ideais e sonhos.
Vínhamos de uma palestra, dada pelo escritor moçambicano Mia Couto, num festival que se realiza no Rio, sobre o teatro da língua portuguesa. Ela própria, a afiada “flor do Lácio, inculta e bela”, mais uma vez, a pátria de nós todos, os escribas e falantes felizes de um idioma tão sensibilizante.
Na única pergunta que formulei ao poeta e palestrante do evento, incitei-o a discorrer sobre a sensação de ver textos seus traduzidos em mais de 20 idiomas e do quanto isso o agradava ou não. Ele foi humilde e direto: “Estou condenado a ser mesmo um escritor da língua portuguesa, não sei se as traduções são bem feitas, acho mesmo é que não, mas só consigo conferir em duas ou três línguas, e o que sinto é comum a todos os escritores, na verdade”. E seguiu nos impressionando com seu jeito bem humorado de falar dos anos da sua infância, da sua juventude engajada na revolução em Moçambique, na sua tarefa simples de escrever e dizer coisas da sua alma, no faz de conta que lhe atravessa a vida e faz dele um autor teatralizado e um poeta revisitado, tempos afora.
Antes, pela tarde, em trabalho de assessoria,eu tinha acompanhado meu chefe num debate sobre as favelas e bairros do Rio de Janeiro. Na mesa principal, encontrava-se o cineasta Nelson Pereira dos Santos e foi exibido trecho do seu antológico filme Rio 40 graus, de 1955. O sábio intelectual, do alto dos seus 81 anos, digno imortal que é da Academia Brasileira de Letras, contou sobre a realização daquela produção em preto e branco e se declarou emocionado ali, diante de uma platéia cheia de estudantes, professores e técnicos para discutir a realidade urbanísitica e social da cidade maravilhosa, sob o tema abordado no seu projeto de jovem que observou o comportamento do morador da favela dos anos 50, e o levou para o cinema com maestria e sensibilidade.
Aproveitei o intervalo do café e fui até ele. Conversamos aquele tipo de conversa que une pessoas de várias gerações em torno de um só tema…o tempo… tantos anos depois… eu fora aluna dele, nos anos 70, na Universidade Federal Fluminense, quando ele rodou com a participação dos alunos, “Como era gostoso o meu francês”.
Nos poucos minutos do nosso papo informal, Nelson me contou que foi à França em maio último para festejar seus 60 anos de Paris, pois lá chegou em 1949, às vésperas de completar os 21 anos para estudar, com bolsa do governo francês.
Trocamos algumas confidências sobre o encantamento da cidade francesa, eu lhe falei dos mistérios que quero ainda desvendar por lá, e que acabei de ter meu primeiro contato com o lugar dos sonhos de tantas gerações, mas vou voltar, com calma e descobrir um a um, segundo meu coração indica e minha alma clama.
Contei-lhe que já me matriculei num curso de francês, para preparar-me melhor e viver algum tempo a partir da minha próxima aposentadoria, bem ali, no ponto de encontro da minha juventude com a minha maturidade. Não lhe revelei, entretanto, que vou viver também o que estiver ao meu alcance, em termos de amor entre homem e mulher, já que tenho um namorado novo e ele vive por lá.
Mas, na manhã do dia seguinte, deparo-me com um texto que relembra o filme “Um homem , uma mulher”, obra que me emocionou tanto, nos anos 60. Volto mais um pouco a fita e me recordo que assisti também à produção do mesmo Claude Lelouch, que se atreveu a filmar, 20 anos depois , a continuação da história, e em 1986, fez “Um homem, uma mulher 20 anos depois”.
Como os mesmos atores protagonizando o enredo que trouxe a sequencia das suas vidas para o tempo do amanhã, em doce e reconfortante final feliz, acompanhei, a tal nova versão, para meu gáudio e de tantos sonhadores, contemporâneos da minha adolescência.
Encontro-me agora, exatamente, na manhã do dia seguinte, na manhã do tempo de todos nós, tantos anos depois.
Pergunto-me sobre a razão pela qual o tempo ao correr nos deixa assim tão à mercê de si, envolvidos com lembranças extremamente frágeis e num piscar de olhos, ali estamos todos, embalados por histórias que permanecem vivas no imaginário do escritor moçambicano, na alma do cineasta brasileiro, na criação do diretor francês de cinema, na saudade da cronista carioca e até no reencontro das meninas alunas que atingiram os 40 anos com a carinha dos 20, e me resgataram a deliciosa condição de amiga do tempo, tantos anos depois…a rodagem do filme continua…ainda somos os melhores protagonistas dos nossos roteiros.
Cida Torneros, jornalista e escritora, mora no Rio de Janeiro
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