aqui tem música, poesia, reflexões, homenagens, lembranças, imagens, saudades, paixões, palavras,muitas palavras, e entre elas, tem cada um de vocês, junto comigo... Cida Torneros
Maracanã
domingo, 28 de fevereiro de 2010
Cida Torneros: memórias de meninas do Rio
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CRÔNICA/ MÚSICA
COISAS DE MENINAS REBELDES
Cida Torneros
O pequeno disco de vinil, compacto simples, era como o chamavam, rodava manso sobre a vitrolinha portátil num quarto de meninas, em Copacabana, devia ser 1969 ou 70, e a música melodiosa e triste era sussurrada pelas vozes de três jovenzinhas rebeldes, eu e minhas duas primas. A música que nos embalou, variava de gosto e estilo, mas nas horas de desilusão, minha prima Regina, que faleceu há pouco tempo, aos 53 anos, sapecava a voz do Antonio Marcos, cantando “eu hoje estou tão triste, eu precisava tanto conversar com Deus”.
Tínhamos entre 17 ou 19 anos, nos vestíamos para sair na noite, escondidas, é claro, esperando que meus padrinhos, pais delas, pegassem no sono. Queríamos ir a alguma “boite”, com vestidos de mini saia, sapatos salto agulha, bem perto, na Fernando Mendes,onde, nos deslumbrávamos como os artistas que iam dar canja, e nossa bebida de praxe era mesmo a cuba libre. O que queríamos mesmo era aprender a amar.
Tínhamos a meninice brejeira, a pele bronzeada pela frequencia habitual às areias de Copa, o encantamento pela novidade, a sensação da transgressão, e, ao mesmo tempo, o medo de alguma aventura mais arrojada, nada fazíamos a não ser trocar beijinhos com namoradinhos tão jovens quanto nós, e corríamos pra casa, onde entrávamos, com os sapatos na mão, rezando para que a Lady,cadelinha de estimação não desse nem um latido, denunciando nossa chegada no apê, onde ainda viraríamos o resto da madrugada, fofocando sobre pequenos delitos, ou fumando um cigarrinho comum, cujo cheiro íamos disfarçar com perfume em spray.
O disco ia chegando ao final, a tecnologia era mesmo manual, e uma das tres esticava o dedinho para que a agulha voltasse ao princípio da música, e lá íamos nós, envolvidas pelo questionamento sobre a tristeza que começávamos a descobrir ser tão comum nos amores desfeitos pela traição, quando pegávamos as mentiras mal contadas dos tais namoradinhos aprendizes de conviver as emoções da ternura e do prazer. Havia também o fato de que muitas vezes nos entusiasmávos por homens que não nos davam bola por acharem que éramos bobinhas demais e não tínhamos a malicia necessária para um “verdadeiro affair”.
A canção do jovem autor, entre muitas outras, era sucesso, e, ao mesmo tempo, era um libelo inocente para o futuro que teríamos que enfrentar. Ele mesmo, que foi prisioneiro do alcoolismo e morreu em consequencia disso, nos transmitiu, além do talento, uma amargura suficiente para que nos identificássemos com uma das mais cruéis rotinas dos relacionamentos, seus finais dolorosos, as decepções amorosas, os finais onde um dos parceiros teria mesmo que chorar. Então, nos diálogos das três, quantas ocasiões não nos perguntamos: Então o amor era isso? Traiçoes, desilusões e sofrimentos?
Acho que foi nessa época que aprendemos também a saber chorar pelos amores perdidos, pelos amores sonhados, pelos amores mal sucedidos, sem entretanto termos desistido de voltar a buscar qualque tipo de amor, pelo resto de nossas vidas.
Já se passaram quase 40 anos, e hoje, ao ouvir a tal interpretação do saudoso cantor, me vi, exatamente como aquela menina-moça ( como éramos chamadas), sentindo um frio na alma, um aperto no peito, a saudade da esperança daqueles dias de juventude, o cansaço de tantas tentativas de encontrar amor sincero, e aí, desabei num pranto sofrido, doído, inteiramente descontrolado, resgatando um momento que dentro de mim, se repete, como um presságio.
A vida rolou, e ainda rola, Regina deixou filhos adultos e sua irmã Lena hoje é viúva com filhos e netos, ainda trabalha e gosta de dançar. Pouco nos vemos, mas quando nos encontramos, é possivel relembrar as artimanhas quase infantis que ousamos viver, como por exemplo, fugir num fusca de algum amigo para tomar sol na Barra, que era um deserto e o fim do mundo, mas nos dava a dimensão de que esse mesmo mundo cresceria mais. Ainda iríamos ultrapassar fronteiras maiores e nos aventurarmos em caronas de avião indo buscar o amor em lugares e países distantes. Talvez o amor seja mesmo essa coisa impossível, na concepção da tal felicidade fantasiosa, e nem adianta fugirmos para praias desertas ou cidades apinhadas, porque onde houver um coração humano sedento de paixão, sempre haverá a possibilidade de amar alguém que nunca soube o que é o amor, como revela a letra da tal musiquinha.
Vou esticar o dedinho e desta vez, já não existe mais o vinilzinho pequeno, nem gira melancolicamente na noite da minha saudade, mas posso teclar no yutube, ouvir muitas vezes a voz dos meus 18 anos, e, aos 60, ainda vou chorar mais um pouquinho por que o tempo não apagou minha tristeza diante de amores desfeitos, de amores que não me deram diploma, por ser ainda uma aluna que não aprendeu direito como amar e ser aprovada com a medalha da felicidade.
Cida Torneros , jornalista e escritora, autora do livro “A Mulher Necessária”, mora no Rio de Janeiro.
sábado, 27 de fevereiro de 2010
sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010
O MISTÉRIO DA FÊMEA
CRÔNICA DE CIDA/ MULHERES
O MISTÉRIO DA FÊMEA
Aparecida Torneros
O MISTÉRIO DA FÊMEA
Aparecida Torneros
Mariazinha tinha 7 saias, alguém cantava antigamente, a Cigana dançava sob 7 véus, a Bruxa enfeitiçava os homens, a Mulher que era Fada, amadrinhava as criancinhas, a Fêmea Sereia atraía os pescadores, aquela que habitava os sonhos é a mesma que nos envolve no seu Mistério.
Mulher é isso mesmo. O mistério da bolsa que carrega: um cofre que contém band-aid, batom e fotos da família. Pode-se passar o raio x e lá há de se encontrar um mundo à parte. Talvez um pacotinho contendo folhinhas de alecrim, ou de hortelã, remédios para alma ferida, quem sabe um papelzinho dobrado com a oração do Anjo de Guarda.
Na agenda, há as que anotam os dias de lua cheia para se auto- reconhecerem ou mais belas ou mais feiticeiras nessas noites, em suas cidades ou em suas camas.
Sob as saias moram as virtudes e as magias, e sob os olhos há qualquer vestígio do incompreensível que assuste o desavisado, ou confunda o experiente. Há no conjunto delas, dessas mulheres modernas a enfrentarem com luta sua conquista de lugar ao sol, um mixto de compaixão e ternura, aliado ao retumbar de bumbos que rebatem estridentemente sua corrida para a independência e seu dispor para comandar e formar famílias, cidades, países, terras e corações, mares e olhares, sentimentos e sofrimentos ultrapassados.
Ora, ponham-nas diante das maçãs do tempo, Evas e Liliths, tentações lendárias, e que se comam as vicissitudes da sua dança do tempo, mordam-se seus lábios degustando parte dos seus medos, para que sobrevivam seus feitos e desfeitos, enquanto filhos e filhas, sobrinhos, netos, bisnetos, tantos que as descendam, se encarreguem de interpretá-las na inútil tentativa de decifrá-las.
Tantos séculos, tantas mudanças de saias, das anáguas pulou-se para as saias justas, ou para as mini, ou para a audácia das calças compridas, e o passo de cada fêmea parece adequar-se à passarela dos ventos, ao passo que sua voz se faz ouvir num repicar constante de idéias que reverberam no som interno dos que param, enfim, para ouvir cada mulher que integra o dia-a-dia das metrópoles ou dos campos.
A garota sai sozinha pelo mundo, mochila às costas, a pequena voa sem destino certo mas vai em busca de si mesma, caminha pela estrada da vida e se descobre inteira. Talvez nem tenha completado os 18 anos, mas já se sente dona do seu nariz, precisa saber de tudo um pouco, o mundo é tão vasto, o tempo corre, há que ultrapassar barreiras e protestar pela minimização das diferenças e contra a persistente injustiça.
Nos campus universitários ou nos pátios industriais, elas se multiplicam, são as mulheres se especializando , além dos fogões e dos tanques de lavar roupa, são as fêmeas misteriosas, como se não bastasse seu papel de procriadoras da espécie, seu bailado atávico qual dançarinas que se movem ciosas da cadência dos próprios quadris, elas se vestem com terninhos coloridos e falam nos microfones.
Discorrem sobre energia, organização social, desenvolvimento dos seus países, elas aprenderam a contra argumentar, contra atacar, contra por, contra cenar, contra bandear até. E bandeiam para os lados que escolhem ou são escolhidas, vai da sorte e da mirada.
Algumas miram o alvo certo, pregam sua atenção em metas pessoais ou coletivas, e não se desviam do caminho traçado. Chegam lá, não há como duvidar das obstinadas. Porém, suas crianças nascem e crescem, e por incrível que pareça, não é que elas se desdobram e vão nas reuniões de pais das escolas? Como conseguem cozinhar e ler ao mesmo tempo, indagam os de pensamento machista tradicional?
Ainda bem que são assim, seres múltiplos, rebatem os antenados, os melhores companheiros para as misteriosas fêmeas modernas. A senhora setentona viaja pela Europa sozinha descobrindo a história, se atualizando com os eletrônicos, calçando tênis iguais aos das suas netas para caminhadas, e fotografando cada momento e monumento, como registro e conquista.
Certamente, em cada mulher reside, além da sede de viver, o gosto pela descoberta da própria liberdade. E isso tem preço, claro, o preço que surpreende os incautos que lhes cobram posturas, enquanto tentam decifrar porque ainda choram diante de meninos índios desnutridos ou de crianças abandonadas nas ruas.
Cada uma delas sabe que o desafio é imenso, há um planeta desordenado a reconstruir, nada que não se possa incluir num sonho dantesco, na medida que se vai fazendo a parte que lhe cabe, pequenina embora, mas importante para a construção do todo. Disso, toda mulher tem certeza.
A partir de pequenos gestos, unindo esforços e cultivando esperança, não é que o mundo está mudando? Pelo menos para elas, para suas irmãs de gênero, seus pares de caminhada, seus namorados e maridos com quem dividem medos e enfrentam guerras diárias, essas misteriosas criaturas que portam úteros-celeiros de vidas e promessas, são realmente uma fonte inesgotável de perguntas sem respostas e de surpresas em cascata.
Delas, pode-se esperar a qualquer instante, a novidade que aquece a alma e o novo discurso que reorganize o trabalho ou redescubra a pólvora, em lugar incerto e não sabido, no mais longínquo reduto de sobriedade que houver num sentimento pleno de audácia feminina, ou de disciplina humana.
Se alguma ainda apavora a um desavisado que não a consiga entender, aconselha-se a meditação em hora do por do sol, posição de lotus, pensamento vago, soltando as amarras culturais e religiosas, apenas cheirando o ar impregnado de busca, deixado pelo rastro de uma delas.
Quando ela passa, leva consigo nossa admiração ou nossa perplexidade, legando-nos muitas interrogações e alguns pontos exclamativos para compensar as histórias universais, com gestos e mesuras de saias e véus, danças e gargalhadas, acenos e sorrisos, ares de quem sabe onde vai e o que quer, a despeito do seu eterno mistério!
Aparecida Torneros , jornalista e escritora, autora do livro “A Mulher Necessária”, mora no Rio de Janeiro. Esta crônica foi publicada na edição on-line do PRAVDA (Russia).
Mulheres, mulheres ( crônica que abre o livro A Mulher necessária)
Mulheres, mulheres, mulheres
Um amigo me disse que gostaria de ter todas as mulheres do mundo. Tentei compreender. Um sonho masculino de possessividade ou um desejo consumista ou até um impulso incontrolável, pensei. Mas, sabendo que é um homem maduro, quarentão, concluí, talvez precipitadamente, que é uma atitude adolescente, de buscar , conquistar, obter, caçar, ou seria um atributo biológico do macho procriador a tentar garantir a prole, perpetuar a espécie, ainda que inconscientemente?
Mulheres, somos de tantas espécies, e acabamos metidas num mesmo caldeirão cultural, submetidas em histórias de machismo e opressão, mas não é verdade que isso nos aconteça a todas. Há as modernas, avançadas nos séculos, independentes financeiramente e com emoções racionalizadas. As que aprenderam a comportar-se como eles, e também querem ter todos os homens do mundo. Como os predadores, elas conquistam e abandonam, escolhem, usam e largam no meio do caminho os tais homens que ainda pensam que todas são iguais.
Mulheres, somos de tantas origens, e entrelaçadas em costumes ou medievais ou estritamente sensuais, ultrapassando as barreiras das religiões ou códigos de costumes. As que se libertaram dos próprios medos e perseguiram o sucesso profissional, que abriram mão da maternidade, que dispensaram o casamento.
Mulheres, somos de tantas loucuras e tantos amores, de tantos ideais e de tantos preconceitos, somos tão diferentes, e no entanto, nos parecemos tão iguais, aos olhos dos homens desavisados.
Um homem que deseja ter todas as mulheres do mundo, as têm no sonho, evidentemente, e nem sempre as consegue ter, nem uma parcela delas, de verdade. Porque se as conseguem atrair para a cama, nem sempre levam junto suas almas, e na maioria das vezes, conhecem seus corpos e sexualidade. Mulheres enganam demais os homens, fingem se submeter enquanto dominam, dissimulam desproteção ao passo que se garantem na sobrevivência e ainda, lhes somam as estatísticas, com um tempo de vida média mais extensa que a dos homens, que parecem cuidar-se menos fisicamente ou desgastarem-se mais rapidamente.
Mulheres, somos de tanta viuvez, de tantos abandonos, de tantas solidões, mas somos um bando que atravessa o tempo, e carregamos tal mistério de bruxas, ou no coração, ou no entre-pernas, ou nos olhos, nas bocas e nos braços, que nem mensuramos o quanto somos diversas e tão parecidas, sejamos jovens ou senhoras, gordas ou magricelas, altas ou baixotinhas, há em nós uma aura de impressionante expressão.
Meu amigo tem razão. É preciso desejar todas e tentar ter algumas, talvez conseguir uma em profundidade, para perder-se dentro dela, e conhecer uma de nós, verdadeiramente.
Aparecida Torneros
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Rodízio de amigas
Rodízio de amigas ( crônica publicada no livro A Mulher Necessária)
Fui saindo em disparada, atrasada para o cineminha de começo de noite de domingo, e ao despedir do marido da amiga em cuja casa passei o fim de semana, no Leblon, ele me saiu com essa... rodízio de amigas.....eu sorri, assimilei, e corri para encontrar com a outra companheira que já tinha as entradas compradas, para assistirmos juntas ao "Memórias de uma gueixa".
No caminho, enquanto pedia ao taxista para acelerar no trânsito, eu pensei na tarde quase toda, onde nosso grupo, de cinco amigas, estivemos sentadas no quiosque da praia, bebericando água de coco, passando protetor solar, entre conversas que giraram desde política partidária até cirurgias rejuvenescedoras.
O papo reconfortante, com a leveza própria das mulheres de estágio de vida conquistada, combinando a fuga do carnaval carioca, do grupo, umas irão para Buenos Aires, outras para o Chile, e outra ficará para brincar mais uma vez a folia na cidade. Aliás, que cidade linda, no domingo, ontem, com aquele sol de rachar o cérebro, e aquele mar azul, verde, entremeado de brilho, fulgurando nossos biquinis floridos entre risadas e constatações.
Esticamos no Bracarense, com direito a chope claro e escuro, e a delícia de camarão, que saltitava ao paladar como um prenúncio do almoço, logo em seguida, na casa da amiga Tê, aquela capaz de oferecer aconchego com sorriso próprio da vida vivida transbordante.
Fui chegando ao cine para ver a Gueixa, rever internamente uma reportagem que escrevi nos anos 70, quando , em Tóquio, entrevistei uma gueixa de 54 anos, que me revelou sua vida e segredos ( alguns) desde que se tornara gueixa aos 13 anos, estudando na tal escola delas, exatamente como assisti em seguida, na história que o cinema me proporcionou.
No trecho que antecedeu o início da sessão, pude pensar mais uns minutos sobre a nomeação do marido da amiga a respeito do meu ir-e-vir com tantas amigas que me circundam, cobram presença, me telefonam, me buscam, me enternecem, me preocupam, me solicitam, me acodem, me ouvem os lamentos, me dão alegria , me complementam, me esperam nos cinemas, nas equinas, nos restaurantes, nos telefones, nas casas, para almoços, jantares, festas, dançam comigo nos salões dos clubes, riem comigo nas areias das praias, caminham comigo nos calçadões cariocas, me pegam de carro nos teatros paulistas, me acompanham na noite dos bares boêmios, cantam pra mim, nas casas noturnas da Lapa, declamam pra mim nos dias sombrios, me injetam vida nas veias, a cada alvorecer, me dão a saudade necessária pra valorizar suas presenças, e ainda, me fazem sentir a companhia sensata e lógica em dias de domingo.
São muitas, eu é que agradeço, são variadas, de gênio, perfil, gostos e comportamentos, mas são tão necessárias, são tão presentes, tão importantes, que somam os longos esclarecimentos telefônicos que revelam mistérios pertinentes ao mundo feminino e particular. Há ocasiões em que é preciso estar mais atenta aos seus apelos, críticas, lamentos e cobranças, na tentativa pertinente de não se deixar perder seu encanto nos caminhos. Quando isso acontece, é preciso permitir que se vão ao encontro de novas impressões de viagem. E não há o que lamentar, só há o que agradecer, como num diário de bordo. Registrando tudo, a paz do caminho com elas ao lado, essa sede de viver, compartilhando felicidade, falando do mundo que é de cada uma e é de nós todas, num segundo só.
O marido da amiga tem toda razão, é com num rodízio, mas não se pode abrir mão de nenhuma delas. E se vou degustando a alegria da companhia, vou também crescendo interiormente, por ser assim, capaz de absorver querências variadas, desfrutar carinho tanto, agradecer atenção ofertada em doses múltiplas e ainda, de bandeja, assistir ao Aznavour cantando SHE... que, se eu pudesse, dedicava a cada "ELA", que me acompanha e preza.
Vi o filme da Gueixa como se fosse um sonho de amor. She (Ela), personagem-título, contando sua vida, me fez reviver o conselho daquela que entrevistei, há tanto tempo:
- Seja como nós, ofereça dons, entretenha, cante, encante, anime, proporcione ilusões, fantasias...
Cada amiga, do rodízio, tem qualquer coisa de gueixa, cada uma delas me faz sentir assim, com vontade de dedicar-lhes uma crônica com fundo musical e agradecer por sua presença em minha vida.
Aparecida Torneros , 2006
Jornalista - Rio de Janeiro
quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010
quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010
Uma corrente de pensamento por Dalva Sarmento Oliveira
Dalvinha, você é forte e vai se recuperar!
beijo da Cida Torneros
Um “tuaregue” no meu quintal... (conto pro meu novo livro)
Um “tuaregue” no meu quintal...
Tá certo que o calor de mais de 40 graus deste verão de 2010 esquenta a cabeça de qualquer cristão, o que dirá de uma “cigana peregrina”, como eu, do tipo capaz de sentir o coração derretido como um sorvete mijão, a cada olhar de pedinte, que o meu misterioso visitante anda a me lançar, ultimamente.
É que um “tuaregue” passou a visitar o meu quintal, sem mais nem menos, vindo talvez desde o Saara, envolto em manto que lhe cobre a cabeça, mas lhe deixa livre o fundo de um olho atrevido, que me espreita e faz enternecer. Ele é alto e forte, sorri com o canto dos lábios, tem voz anestesiante e fala através de linguagens de sinais, em tom baixo emite sons de um idioma que tento decifrar. Faz gestos comuns a adolescentes assustados. Usa até gírias que nem conheço direito, tento traduzir, como posso e consigo, pois necessito compreender os porquês das suas vindas a mim, no calor dos meus anos incrédulos, quando eu pensava que já tinha visto de tudo e não me restava aprender quase nada além.
Às vezes penso que ele é um espírito antigo querendo me comunicar algo de sobrenatural. Claro, que, apesar de nunca ter pisado oficialmente nas areias ferventes dos desertos africanos, não me é custoso imaginar como sejam as miragens, quando a mente ensandecida sonha com oásis verdejantes, ventos que refrescam corpos suados, águas que dessedentam gargantas sequiosas de líquido revigorante.
O duro deve ser quando se é surpreendido pela cruel realidade após a visão fantástica do sonho, e se descobre que aquelas imagens deliciosas não passaram de produção prodigiosa e defensiva de imaginação fértil em solo infértil, ou melhor, uma grande postura sobrevivente, em momento crucial e devastador, a loucura que é atravessar um deserto onde o infinito é tudo, o horizonte é tudo, o céu e o chão de areia são quase nada, e o mundo se resume a dias e noites de solidão, propícia à meditação e ao jejum.
Pois não é que no meu quintal apareceu um “tuaregue”?
Custei a crer, fui sentindo sua presença bem devagarinho. Primeiro, observei seu andar desengonçado a circundar o meu jardim, tive dele a impressão de que me queria como uma mulher para se levar na corcova de um camelo. Mas, lembrei que no Marrocos, por exemplo, eles trocam as mulheres por camelos valiosos, e me vi metida numa história pra lá de Marraquesh, onde entraria numa roubada.
Eu me vi, então, como uma roubada criatura, abduzida por um berbere de origem mulçumana, com sua questionável e milenar sede de possessividade. Era a sua chance de me conduzir a uma dessas tendas recheadas com almofadas, tão macias e sedosas, dando-me sucos afrodisíacos para beber ou me induzindo a comer tâmaras secas como se fossem uvas frescas. Habituei-me então a usar vestidos que aderissem às minhas curvas mas que não denunciassem detalhes dos meus contornos. Inspirei-me nas burkas, aliciei colares e brincos para me protegerem dos maus olhados, pintei de vermelho as unhas dos pés, ergui meu pescoço em direção ao azul e me concentrei na espera do que poderia acontecer a qualquer instante.
Viajei na maionese, afinal, como dizem minhas amigas tão namoradeiras quanto eu, há períodos de entre safra e há outros, de intensa força da natureza, em que chove na nossa horta. Foi o que concluí, “tá chovendo na minha horta, um guerreiro do deserto, intenso e instigante, vem ao meu quintal e diz que me quer”.
O que posso esperar ou lhe oferecer? Pergunto se toma café, bebida comum na terra brasilis, um pouco diferente dos seus habituais chás de ervas e seu apurado gosto pela menta. Ele, a princípio, ao pegar a caneca que tem o símbolo de um time de futebol, teme que seja uma inscrição religiosa, pergunta-me do que se trata apontando o desenho vermelho e branco. Titubeia ao segurar o objeto, onde lhe sirvo a bebida quente, escura e perfumada, que acabo de ordenar ao “gênio” da cafeteira elétrica que atendeu um dos meus três pedidos a que tenho direito nesta manhã ensolarada de uma sexta-feira. Um gole de café cheiroso é meu cartão de boas vindas ao visitante que veio de longe.
Esclareço que pode pegar sem susto na porcelana antiga, é herança do meu pai e o escudo é de um tradicional clube carioca, que mora no coração de todo torcedor não fanático. Refiro-me ao América, agremiação pela qual tenho carinho especial. Ele relaxa, acena para Alah em agradecimento, bebe de um só gole, devolve-me a xícara, porém, maliciosamente, encosta seus dedos nos meus, num gesto que dura um segundo premeditado, o que me passa uma corrente eletrificada causadora de um arrepio extra-corpóreo, sacudindo-me as entranhas e o espírito vagante, unindo extremos que funcionam como fios terra, ligando-me a algo tão novo quanto surpreendente, a partir de então.
Tento voltar ao meu estado emocional de equilíbrio consciente. Nada, ando flutuando ao sabor da materialização que este ser assumiu, sua aura e energia me confundem. Apelo para meus estudos de poder positivo da mente,“sapeco” discurso de professora universitária, digo que ele está em terra de estranhos, falo de distâncias nossas, impossibilidades para mantermos qualquer tipo de relacionamento, lembro que somos como a Terra e o Sol, Cristãos e Mulçumanos, agradeço sua visita inesperada, ainda consigo ouvi-lo falar que sonhou comigo, mas entro, fecho a porta, escondo-me atrás da vidraça, cerro as cortinas. Fico muda. Aguardo que desista.
Ando cansada de conversas de homens de lugares distantes. Já conheço as manhas dos americanos, italianos, franceses, portugueses, brasileiros de outras cidades, espanhóis, e agora, só me faltava essa, um habitante tão nômade, de costumes tão díspares a me conquistar com sua perseverança, como dizem por aí, a me comer pelas beiras.
Muitas horas e dias depois, ouso olhar de novo o meu quintal. Lá está o vulto dele. Altivo, de pé, manto enrolado na cabeça, sorriso contido, olhar direcionado à minha porta. – Ainda estás aí, “Tuaregue”? Não vais embora? ( pergunto, entre tímida e curiosa)
Sua resposta é uma corrida em minha direção. Um feitiço vindo com os ventos arenosos perpassa a minha solidão. Seu abraço me detona uma bomba interior, não consigo conter a explosão, um gosto de antiguidade me toma a saliva, meus gemidos são característicos de corridas na selva, quando a presa ainda pensa em fugir do caçador atrevido, acho que um frescor se entremeia ao calor dos nossos dedos, não sei mais quem sou ou quem é ele.
Ele me “pegou”.
Invadiu minha casa, adentrou com seus cânticos o lugar onde me protejo dos assédios humanos, sabe tanto de mim que nem sei como negar-lhe o primeiro beijo, que ele me rouba na cozinha, junto da pia, cena que me fez recordar o filme “Atração fatal”. Mas alguém das terras de Muamar Kadafi, saberia o significado de um filme tão way of life norte americano? Nesse instante mágico, penso comigo: “estou fu...”, afinal, não é todo dia que um “tuaregue” de linhagem principesca, com ares de mandingueiro, como o daquela música do Benjor que a Gal gravou nos anos 70, surge assim no caminho de uma escritora de contos fantasiosos. Rendo-me.
Entretanto, só que lhe peço uma única coisa. E ele atende ao meu pedido, aturdido, mas galhofeiro. É a primeira vez que eu testemunho sua sonora gargalhada. Ele ri, extasiado, antes de cumprir o que lhe imploro, no auge da doidice, que já nos conduz ao quarto. Coincidentemente, reconheço, na minha cama, as mesmas almofadas macias e coloridas da tenda onde imaginei que ele me levaria.
Sinto que me belisca com prazer, morde-me com fúria, sacode-me com animalidade. Pedi que me provasse que aquilo estava realmente acontecendo, não era miragem do deserto e que estávamos acordados. – Belisca-me, pra saber se estou mesmo viva!
A partir desse dia, quando sinto o odor almiscarado que a brisa faz entrar pela janela do meu quarto-escritório, corro até a porta, abro e o revejo ali, muitas vezes, mudo, noutras, com palavras sussurradas, à espera de que o deixe entrar novamente, para que vivamos o que nos cabe viver, e sonhemos, sim, o que nos é direito sonhar, no calor alucinante de um tórrido verão que nos uniu.
Ele existe mesmo e tá morando no meu quintal, montando guarda, tem ares de “meu dono”, acho que veio para tomar conta de mim. Será miragem? Na sombra da noite, ele some, na luz do dia, reaparece... como o Sol o “Tuaregue” me ilumina...me aquece e me devolve a sede de viver...
Cida Torneros
Fevereiro 2010
terça-feira, 23 de fevereiro de 2010
Como uma colegial ( conto )
Como uma colegial
Cida Torneros
Marie chegou apressada. Desceu as escadas em espiral do velho prédio da rue de Remmes. Ansiosa, foi encontrar o homem que a fazia comportar-se, ultimamente, como uma colegial.
Sentia-se de saias curtas, saltitante, risonha e bobalhona, à espera de um beijinho ou de uma brincadeira adolescente. Assim, quando ele a olhou tão carinhosamente, ela se viu abraçada e beijada, provou o gosto do dentifrício, o cuidado do sentimento crescente, a presença dadivosa de um Papai Noel, pois ali estava o seu Antoine, com uma sacola cheia de presentinhos. A menina curiosa foi brotando da mulher madura, cada surpresinha que saía da sacola era como um jogo de adivinhação.
Chaveirinhos, perfumes, sabonetes, uma camisa de jogar futebol, canetas, cartões postais, uma miniatura de um carro de corrida, as risadinhas que ela desprendia, os minutos de alegria, as promessas de amor, o encontro finalmente realizado.
Então, o dia aconteceu e as horas de Paris a eles foram dedicadas. Mãozinhas dadas, muitos percursos de Metro, a partir da estação San Placide, a visão extasiada da juventude que os revisitou. Seu caminho se transformava assim como uma corrida de revezamento, traçavam planos para tornar aqueles instantes não só inesquecíveis, mas realmente eternos.
Depois de caminharem muito a pé, passar pela Sorbbone, onde ele apontou o lugar das barricadas de 68, que ele presenciou, atônito, como um jovem imigrante sul-americano, incrédulo e testemunha dos novos tempos. Alcançaram o Quartier Latin e entraram num restaurante para almoçar, com direito a vinho e cerveja. Ela se pegou, mais uma vez, como uma menor de idade, transgredindo regras, com gosto de abuso de autoridade, era como se tivesse completado 17 anos na semana anterior, e seu professor com quase 30 anos a levasse para um restaurante de gente grande.
Brindaram ao amor, beijaram-se sobre a mesa, erguendo-se para juntar suas bocas no céu que flutuava acima dos pratos, cuja comida, um purê e alguma carne, degustavam tão lentamente, entrecortando com múltiplas palavras de amor, com olhares cúmplices, e a doce expectativa da ida, pela primeira vez, juntos, a um hotel.
Aí, ele a levou em seguida ao Café de Flore, para degustarem um cafezinho à moda dos existencialistas, Sartre e Simone, que frenquentaram aquele lugar, nas décadas de 50 e 60. A vida lhes tornava tão apaixonados, repentinamente, disso agora, tinham certeza, o melhor ainda estava por vir, acreditavam. Mais algumas histórias pessoais foram trocadas, intensos toques de mãos e bocas, prepararam-se para a entrega de almas e corpos, continuaram a voar pela imensidão que os levava a planos nunca atingidos antes.
Quando chegaram ao quarto para concretizar sua louca paixão, parecia que as canções da sua mocidade voltavam à parada de sucessos. Ambos se transportaram a, pelo menos, 40 anos antes, era como um reencontro no tempo, uma viagem ao passado, com gosto de futuro.
Ela se viu seduzida, intimamente realizada, desabrochando como fêmea, ainda que já fosse comemorar 60 anos, alguns meses à frente, Marie, nos braços de Antoine, era mesmo, e até ele sussurrou e confirmou: - Como uma colegial!
A visita de Piaf ( conto)
A Visita de Piaf
Um céu nublado inundou a cidade de Paris, naquela primavera fria, de 1950.
Marie nem podia crer que era ela mesma, a própria Piaf, a famosa compositora e intérprete, que estava na sua frente, tão frágil como um pequeno pardal. E seus olhinhos brilhavam refletindo os sentimentos de uma mulher apaixonada e atormentada.
Piaf chegou devagar, na sombra de um sorriso, trouxe para a mulher que a recebeu na porta da loja de conveniência, o tom da sua melancolia, a cor pálida da sua incompreendida vida, seus anseios de amor e a pressa de chegar a um lugar que desconhecia. Parecia sem rumo a pequenina cantora. Disfarçada com óculos escuros, e imenso sobretudo, tinha os cabelos envoltos num lenço de seda em matizes de branco e negro. Figura lendária, Marie logo percebeu estar diante de uma deusa da paixão e legítima representante da perplexidade da vida.
Falaram-se monossilabicamente. Piaf buscava cigarros e uma garrafa de bebida quente. Estava sozinha, sem rodeios, sem maquiagem, saltara de um táxi. Eram quase dez horas da noite, Marie preparava-se para cerrar o lugar, depois de um longo e cansativo dia.
Olhou com certa reserva aquela criatura que parecia menor ainda, muito mais frágil do que se podia pensar, além de trazer as mãos tão finas com dedos longos, unhas crescidas e tratadas, Piaf lhe oferecia um semblante com ares de pedinte de companhia.
Marie convidou-a a sentar e as duas puseram-se com os olhos cruzados, ao redor de uma pequena mesa, enquanto eram providenciadas duas taças, um cinzeiro, como se fosse um ritual. A artista acendeu um cigarro, olhou a jovem com atenção, recebeu de volta uma mirada indagadora, porém doce.
As palavras custaram a sair de suas bocas. Havia, por outro lado, um sentido de estranheza, de parte a parte. Quem seria aquela moça aparentemente mansa, trabalhadora de uma lojinha, que se dispunha a ficar só , até aquelas horas, em rua semi deserta, à espera de um último freguês?
Nos pensamentos confusos de Marie, como podia aparecer naquela loja tão inexpressiva, uma cantora de fama internacional, assim solitária e tão carente que era posível ler nos seus gestos a insegurança dos aflitos e a inteligência indecifrável dos grandes gênios.
- Só preciso de umas tragadas e de uns dois copos. Depois me vou e não a incomodo mais. Você deve ter uma família esperando, em um lar tipicamente francês, não é?
- Não é, ( Marie prontamente respondeu), moro sozinha, vim do interior, tenho 29 anos, não tenho um amor, conheço todas as suas canções, e hoje, talvez seja o momento mais importante da minha vida.
Piaf sorriu então um sorriso aberto. Tinha encontrado a pessoa certa na hora certa e o lugar lhe pareceu perfeito. Precisava registrar aquele instante. Sua vida era uma sucessão de emoções, altos e baixos, buscas e perdas.
Perderia por certo o contato com Marie , qual era mesmo seu nome? perguntou...
Mas, como suas lembranças eram muito fortes, desde a infância passada no prostíbulo, Piaf se habituara a ler os rostos das mulheres mal amadas e sonhadoras, e a traduzir em canções seus intensos , nostálgicos e dissimulados afazeres.
Logo, ao deixar para trás a loja, ia mesmo recordar Marie, símbolicamente, levaria dentro de si, o arremedo de aconchego que a jovem lhe oferecera, talvez pudesse guardar mais, para compor alguma canção de amor, algum dia, em homenagem à vendedora humilde e amiga. Piaf não conseguiu pagar a conta. Marie impediu-a, sentiu-se à vontade para presentear a artista com a bebida e os cigarros, sabia que esta lhe dera mais, em contrapartida, lhe ofertara o prazer de receber aquela incrível e inesperada visita.
Acompanhou a cantora até a calçada para chamarem um táxi. Quando Piaf entrou no carro, Marie abaixou-se , pegou suas mãos, beijou em reverência, agradeceu sua arte, sentiu que lágrimas fizeram brilhar os olhos da divina compositora.
Aí, num ato reflexo, Piaf, acariciou a cabeça da jovem, e falou baixinho: - Hoje, estou voltando à França e recomeçando tudo. Faz um ano perdi o grande amor da minha vida, num acidente de avião, e como você, Marie, serei sempre só, mas, nós, as mulheres sozinhas, sabemos que tudo não passa de uma perspectiva... no fundo, estamos mais acompanhadas do que nunca, pelas nossas lembranças e por um infinito desejo de viver.
E pediu ao motorista que desse partida. Se foi, Marie manteve-se como estátua por minutos vendo o carro sumir na noite, ouvindo a voz de Piaf confessando-se solitária, sentindo ainda sua mão amiga afagando seus cabelos e sobretudo, descobrindo, definitivamente, que teria a companhia da estrela, junto de si, por toda a vida.
Em 1955, anos depois, Piaf apareceu triunfante, num show magnífico no L'Olympia de Paris. No final do espetáculo, recebeu uma embalagem com um presente no camarim, só foi abrir bem tarde, já em casa, depois da noite maravilhosa da sua volta ao sucesso. Na caixa, havia uma carteira de cigarros, uma garrafa de conhaque e um bilhete, "Para que jamais se sinta só, nas noites em que volta à França. Com a minha companhia, Marie."
Maria Aparecida Torneros- RJ
( autora dos livros "A muher necessária" e "O contra-ataque do amor")
Noel Rosa, Fita Amarela, ele morreu jovem mas nos legou uma obra grandiosa...
NOEL ROSA
BIOGRAFIA
"O avô era médico,
a avó tocava piano,
e o irmão formou-se em medicina.
E Noel”?
Noel Rosa nasceu em 11/12/1910 na cidade do Rio de Janeiro. Era neto de médico, e o desejo de sua mãe é que ele também fosse.
O parto foi difícil e os médicos não tinham alternativa, se não forçassem o seu nascimento, mãe e filho poderiam morrer.
E assim nasceu Noel de Medeiros Rosa, marcado pelo fórceps que lhe fraturou e afundou o maxilar inferior, provocando também a paralisia parcial do lado direito de seu rosto.
O defeito do rosto acentuava-se à medida que o menino crescia. Aos 6 anos foi operado, mas a ortopedia da época não conseguiu nada.
Aos 13 anos, ganhou o apelido de Queixinho. Ficava quieto, remoendo a amargura que lhe causava o defeito, mas já revelava a ambigüidade do Noel adulto; em outros momentos falava pelos cotovelos, inventando brincadeiras e contando piadas.
Noel estudava apenas o suficiente para passar de ano e fez suas primeiras aparições com 15 anos. Ingressaria, aos 19 anos na faculdade para a alegria de seus pais. Em 1932 já não freqüentava as aulas. Perdia-se um mau médico, ganhava-se um bom sambista. Da medicina a única coisa que aproveitou foi a inspiração para fazer um “samba anatômico”, chamado Coração.
Numa entrevista, ele dá uma versão do nascimento da música: “Com sangue de boêmio, eu passei a chegar em casa, em determinada época, a altas horas da noite. Vinha de festas, ou de serenatas, ou de simples conversa. Mas, o fato é que essa vida passada toda em claro devia prejudicar a minha saúde. Foi o que aconteceu. Comecei a emagrecer assustadoramente. Adquiri umas olheiras dramáticas e minha mãe se assustava. Pressentiu antes de ninguém meu estado”.
Certa vez a mãe de Noel preocupada com sua saúde, escondeu as roupas do filho, justamente num dia que os amigos iam buscá-lo para uma festa. – “Como é Noel, vamos para o baile? “E eu, dentro do quarto, mas com que roupa? Mal eu tinha acabado de soltar a frase, quando ocorreu-me a inspiração de fazer um samba com esse tema. Foi um barulho, todo mundo cantou. É assim que eu faço as minhas coisas. Essa música foi gravada para o carnaval de 1931 e foi transmitida pelos alto-falantes dos clubes carnavalescos sendo o maior sucesso, onde vendeu 15.000 discos.
Noel estava interessado numa dançarina chamada Ceci e marcou um encontro com ela. Ceci não apareceu e mandou uma carta dizendo que não queria compromisso. Então Noel enciumado e com dor de cotovelo casa-se imediatamente com Lindaura.
Lindaura suportou a vida do marido, embora de vez em quando tentasse reivindicar seus privilégios de esposa, mas Noel não tinha cura, muitas vezes saíam juntos e ele a abandonava para ficar com os amigos que encontrava pelo caminho. O pouco dinheiro que ganhava não chegava em casa, por isso o casal era sustentado pela mãe de Noel, o que aborrecia bastante Lindaura.
Numa entrevista a uma revista, foi feita a seguinte pergunta a ele: - Que relação julga que existe entre o amor e a música? – “Romeu e Julieta morreram ignorando-a. Acho porém, que a relação seja a mesma que existe entre a casca de banana e o escorregão."
Noel era despreocupado com as coisas formais, seu dia começava à tarde quando levantava e ficava compondo. Mostrava para a mãe a música recém feita e saia para os bares, cafés.
Evitava comer na frente dos outros, pois mastigava com dificuldade. Por isso mesmo alimentava-se apenas de caldos, ovos e comidas leves. Passando as noites em claro, comendo pouco, fumando e bebendo muito, logo começaram a aparecer manchas ameaçadoras em seus pulmões. Noel precisava mudar de vida se quisesse sobreviver.
O médico, então sugeriu que viajasse para um clima seco, como Belo Horizonte. Com a colaboração dos amigos viajou com a esposa no início de 1935. Mas, Belo Horizonte também tinha emissoras de rádio, cafés, botequins, cervejas e gente querendo ouvir Noel cantar. Então, porque não retomar a vida antiga? O médico advertiu; se não continuasse o tratamento, teria apenas dois anos de vida.
Para Noel era o suficiente, preferia dois anos bem vividos do que sobreviver sem cigarros, bebidas, mulheres e samba.
O prazo de dois anos se escoava. Em novembro de 1936 surgiu-lhe um doloroso abscesso na face esquerda, operado pelo vizinho dentista.
Precisava novamente dos ares da serra. E precisava novamente da ajuda dos amigos para poder viajar. Em janeiro de 1937 foi para Nova Friburgo, mas voltou 20 dias depois, sem ânimo para a boêmia e ficou alheio mesmo ao carnaval.
No dia 4 enquanto na casa vizinha cantavam e tocavam suas músicas, Noel dizia para seu irmão que velava à sua cabeceira;-“Estou me sentindo mal. Quero virar para o outro lado“. Ao virar a sua mão tamborilou alguns momentos sobre a mesinha de cabeceira. Depois as batidas foram esmorecendo, e seu coração parou. Estava morto, Noel Rosa, aos 27 anos de idade, de tuberculose, o cantor da Vila.
Modéstia à parte, meus Senhores, sou da Vila...
Nem dá pra comparar a Vila com qualquer outro bairro do Rio... O tal "feitiço sem farofa", que o Noel Rosa definiu tão bem, tem a ver com a origem, por exemplo do jogo do bicho, inventado, sorrateira e expertamente, pelo Barão de Drummond, que também criou o primeio jardim zoológico do Rio. Hoje, ali está um parque onde, há 30 anos, levei muito meu filho pra brincar e fotografar. Fica aos pés do Morro dos Macacos, palco da comunidade que engrossa as alas festivas nos carnavais da Unidos de Vila Isabel, cujos ensaios na grande quadra localizada no Boulevard 28 de setembro, são verdadeiras aulas de samba, de alegria e de empolgação.
Caminhar pelas calçadas da Vila é resgatar mais de 200 anos de história carioca, no mais popular enredo que isso possa nos oferecer, como por exemplo na rua em que moro, a Maxwell, que tem no número 300 um grande mercado funcionando onde antes era a fábrica de tecidos Confiança, imortalizada pelo Noel com a canção "Três apitos". Os apitos continuam tocando, sinalizam que a Vila permanece ligada na sua história, e na sua alma intensamente cultivada por seus poetas como é o caso do Martinho da Vila, por exemplo. Este, com talento de sobra, é figurinha com quem a gente esbarra por aí, nas tardes-noites, e pode visitar o Botequim do Martinho, que funciona no shopping Iguatemi, na rua Teodoro da Silva, rua em que morou Noel Rosa. Nessa rua, vive minha mãe, agora com 83 anos, numa tradicional vila de casinhas humildes e aconchegantes.
Gosto de observar o bairro na hora em que acorda. Trânsito caótico para desembocar nas vias que dão acesso ao Maracanã , Praça da Bandeira e ganham o rumo do centro nervoso da cidade. Tem criançada correndo para não perder a hora das aulas, tem moça bonita indo trabalhar em escritório e comércio, já não existem as tais fábricas que foram desativadas, deixando saudades nos boêmios que voltavam da farra pelas sete da matina enquanto as donzelas operárias passavam por seus sonhos.
Quando o apito da fábrica de tecidos vem ferir os meus ouvidos, eu me lembro de você...Você que atende ao apito de uma chaminé de barro, porque nao atende ao grito da buzina do meu carro?
E pertinho da UERJ, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, a imagem em forma de escultura, do Noel, sentado na mesa do botequim, sendo atendido pelo tal garçom a quem ele canta e homenageia em forma de galhofa, tal deliciosa Conversa de Botequim, lá estão os passantes e os figurantes. Como há uma cadeira vazia, todos se sentam um pouquinho ou para sacar fotos ou para reviver a cena contada nos versos do poeta da Vila.
Mas tem a chegada da noite, depois que a tarde pode ter sido de reza na igreja de N. Sra. de Lourdes, por que não dar uma passadinha no Petisco? Ali, costumo marcar com amigos e jogar conversa fora, bem na esquina da Visconde de Abaeté.
Em frente, pra almoçar, muitas vezes pelas três da tarde de um domingo qualquer, vou ao Galeto, faço isso há mais de 30 anos, e tomo o chope mais bem tirado da região.
Mas, nas noites perdidas de um sábado solitário, vamos eu e Deus comer o pastel e o risoto de camarão do Siri da Vila, na rua dos Artistas, onde mora meu filhão. Claro que não ficamos sozinhos, porque Deus logo me avisa: aí vem o Osmar, prepare-se para um bate papo daqueles.
Osmar é o meu garçom com ares de psicanalista, que me serve ali também há mais de três décadas, e a quem eu confidencio projetos, planos e disssabores. Ele, por sua vez, me conta a cada mudança de casa, troca de carro, viagem de férias á sua terra nordestina, e seguimos assim, amigos, em parceria que inclui até ele me lembrar, quando chega dezembro, que devo reservar a mesa para comemorar o aniversário do meu filho, que começou quando menino e agora já passou dos trinta.
Na Vila, minhas vizinhas ficam com as chaves da minha casa quando eu viajo. A gente é mesmo família por mais que isso possa parecer antigo. Se precisamos de carne, é só ligar para o açougue da D. Leonarda, que ela envia o pedido, com tudo certinho e ainda pergunta se precisa de leite e pão, pois a camaradagem pode esticar os serviços extras no caminho do entregador.
Só moro na Vila há 35 anos. Tenho 60. Antes, morei no subúrbio, em Ramos, por 20, e antes da Vila, estive no Andaraí, guardando de ambos ótimas lembranças.
Mas, como falei no princípio deste texto, não dá pra comparar a Vila com nenhum outro bairro, embora seja apaixonada pela praia, e frequente o Rio inteiro, é pra Vila que gosto de voltar nas madrugadas insones, é na Vila que deito melhor a cabeça no travesseiro, e é na Vila que encontro meu irmão, cunhada e sobrinhos que também moram pertinho, quando fazemos algum churrasquinho ou festa de Natal.
No carnaval, os shows do Planeta do Chope, antecipam a festa. Os blocos de rua infestam as ruas do bairro, a alegria corre solta. Se tem tiroteio no morro, qualquer porteiro nos avisa mais depressa que a rádio Global, e nos bailes da terceira idade, da Associação Atlética Vila Isabel, se eu não "tô fazendo nada, vc também", escapulo e vou lá, ouvir música ao vivo, dançar um pouquinho, tipo dança de salão, e menina não paga. Mais um dos privilègios da vida na Vila, com direito a horário comportado das 18 as 22 horas, com gente alegre que já passou dos "enta" há muito tempo.
De repente, lembro que há canções cifradas nas calçadas, lembro que há uma vida na Vila que causa inveja, será? E pergunto porque alguém iria dar um Palpite Infeliz, como cantou Noel, a respeito da Vila. Precisa perguntar? Tá na cara... né?
Cida Torneros
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