Falem-me de amor... e me compensem o avesso da sorte!
Fui sorteada ao avesso, em pleno sábado, dois assaltos em menos de quatro horas de intervalo.
O primeiro, no caixa eletrônico, de manhã, dois homens bem apessoados levaram-me dinheiro e eu chamei a polícia. Escafederam-se, não me apontaram arma, até um deles me pediu desculpas, mas fiquei sem entender direito sua atitude, chamei-o de "abusado".
Depois, na delegacia, o sub-delegado me disse que eu correra risco de ser nocauteada, sei lá, coisa que o valha. Fiquei brava, com raiva, impotente e nem consegui chorar. No caminho de casa, a pé, usei o celular e eis que um pivete veio correndo, me tomou o dito cujo da mão e saiu correndo. Eu, ora, gritei, tudo que podia, soltei o verbo, impropérios, um homem tentou pegá-lo mas ele era como um maratonista ziguezagueando na contramão do trânsito, pouco mais de meio-dia, sumindo pela rua, como um bólido. Levou com ele minha agenda, para mim, tão preciosa. A companhia telefônica não a resgatou pois eu, inadivertidamente, a salvara no aparelho e não no chip, talvez não seja essa a explicação técnica correta, parece que eu teria que ter um contrato para resgate de agenda em caso de perda ou roubo, mas eu desconhecia isso.
Então, abalada, mas inteira, no final da tarde de suposto "azar", fui ao salão de cabeleireiro e me produzi para ir ao teatro municipal e assistir a partir das oito da noite, a ópera "O Guarani".
Durante algumas horas, voei na música, na história e na intensidade de sentimentos que se misturavam desde o palco até meu assento no balcão superior, de onde eu observava o quanto é compensador ouvir falar de amor.
Uma aura de encanto tomou conta do meu momento. Nem era mais importante lembrar a violência, eu estava ali, tinha a sorte verdadeira de assistir ao espetáculo. A orquestra perfeita, os arranjos maravilhosos, o coro me embalando a um céu de paz, de bons fluidos. Os larápios, pensei de repente, não tinham aquela felicidade a que eu podia ter acesso, quem seriam eles, onde estariam àquelas horas, enquanto desfrutavam do "meu" dinheirinho ou do meu ex-aparelho celular?
Mundo estranho, paradoxal. O pior roubo, pensei, seria se me privassem de ouvir canções e palavras de amor. Em situação semelhante, eu estaria mesmo "roubada", pois o amor é o ar que preciso respirar, quando ele me chega pelas notas musicais, pelas vozes cadenciadas, por olhares sensíveis, ouvidos atentos, enlevos sonoros, sons de fagotes, oboés, harpas, violinos, instrumentos de sopro, maviosos cantos de tenores, contraltos, baixos, enternecedores diálogos musicais que expressam a alma humana em sua pura existência, na plenitude de doar-se a quem ama sem roubar-lhe a sede de viver, oferecendo-lhe oxigênio em forma de carinho, dedicação, fidelidade e aconchego.
Passados poucos dias, vou me reorganizando, comprei novo aparelho, refaço a agenda, refaço contas para superar o dinheiro perdido, agradeço as oportunidades que a vida me dá para refletir suas paradoxais intempéries, sigo e supero.
Ouço então a voz doce da grega Nana Mouskouri, na calada da madrugada, sozinha, e consigo pela primeira vez, desde aquele sábado, verter uma lágrima, emociono-me. Eu não tinha conseguido chorar, em face das investidas dos ladrões, tinha sentido muita impotência, mas, durante o espetáculo clássico, somente me arrepiei sem extravazar a confusão de sentimentos represados que acumulei naquele dia.
Mais dois dias e nada. Só a sensação de fazer parte de um mundo moderno e louco, de uma sociedade imperfeita, de uma cadeia de omissões sociais, de uma humanidade capaz de auto-agredir-se, de violentar-se, de ludibriar-se, de mentir, de usurpar seu semelhante, mas, claro, não é a totalidade da espécie, é parcela dela, é um lado da transgressão, uma fatia do bolo social, talvez a banda podre do inconsequente descaso com que certa camada ou classe tenha sido tratada.
E o amor? Acho que o ladrão que me pediu desculpas, mesmo me roubando, tinha um ínfimo arremedo dele, ao me observar possessa, reclamante, ameaçando chamar a polícia,certamente, transtornada e doida, pois ele e seu comparsa podiam ter me derrubado fisicamente, mas não o fizeram. Fugiram, deixaram-me sem o dinheiro, mas com a cabeça intocada, o corpo tremendo, mas de pé, o olhar perplexo, mas aguçado em direção ao que veria mais tarde.
Um teatro lindo restaurado, um conjunto de atitudes que são fruto do amor à arte, à cultura, ao estudo da música, vidas inteiras de pessoas que ali sintonizavam a meiguice e a fortaleza que só uma ópera é capaz de despertar em seus altos e baixos, seus volteios e ápices, a viagem dos sonhos, o esquecimento das vicissitudes do mundo lá fora.
O amor, falem-me dele, por favor. Falem-me sempre. Repitam que o amor é a compensação do avesso da sorte. Deixei que desfilassem no meu pensamento, durante a ópera, imagens de carinho, afeto, familiares, amigos, amores que se foram, amores que sobrevivem, amores que virão. Agora, consigo verbalizar os acontecimentos, com a devida isenção me permitindo superar medos, minimizar ódios, buscar perdões interiores, agradecer chances e amar o amor, o mesmo amor que tanto inebria como atormenta, que acrescenta horizontes, que se bifurca em encruzilhadas escuras, mas que sabe encontrar caminhos de luz, nas horas certas, quando alguém se apaixona, perdidamente, ou renuncia ao amor, ou o persegue, ou dele foge, ou por ele morre, ou para ele vive, além da própria morte.
Se me vierem falar de algo concreto, como o episódio violento de um assalto na grande cidade, por favor, compensem-me repetidamente, contando histórias de amores inesquecíveis, amantes capazes de se entregarem aos prazeres, enamorados sonhadores, criaturas que esperam por toda a vida por um par que os compreendam, os acompanhem, lhes segurem as mãos, caminhem ao seu lado, por décadas, embevecendo suas almas, desafligindo, sobretudo, seus corações. Sem entretanto, roubarem tampouco sua esperança por momentos felizes ou sequer a crença na bondade humana que ainda é possível, se o amor também o for.