Maracanã

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domingo, 26 de setembro de 2010

Viajante, a música que mudou minha vida...



Eram os anos 80, eu, na correria, criando filho, casadinha, dando aulas na universidade, trabalhando dia e noite, enfrentando crises afetivas, existenciais, era um poço de  perguntas sem resposta sobre a convivência. Uma noite, saí do trabalho e dirigi meu carro rumo ao shopping da época, o Rio Sul. Quase lá chegando, na fila do estacionamento, o radinho antigo do carro antigo, começou a emitir a voz do Ney Matogrosso, em tom de confissão... Parei  meus pensamentos para interiorizar a música. Uma sensação de resposta  me tomou de assalto. Minha nossa, aquela voz e aquela letra, misturadas naquela melodia, pareciam responder ao meu momento de vida. Como explicar o que senti exatamente no instante em que percebi que a viagem de nós todos é como um furor uterino? Cercas que criamos para viajarmos menos? Medos de sair das redomas em que nos enredamos para nos certificarmos de que estamos salvaguardados de   novos desafios? Gente, eu era, naqueles poucos minutos, o  tal ser  que se guardava tanto ardendo de medo    para enfrentar  a morte do amor dentro de mim. Chorei. Lágrimas de desabafo iniciaram seu trajeto sobre minha pele, eu  não podia me desgrudar do volante, segurava a marcha do automóvel, como quem segura a bóia salvadora do naufrágio, e consegui estacionar. Ainda fiquei tonta  alguns segundos, ao final da interpretação, sabia que jamais ia  me desligar  do  intenso  toque que a  voz do artista, através da música, tinha acabado   de me passar, um recado revolucionário para uma vida que se encontrava estagnada, repetitiva, acomodada, quase conformada  pelo descaminho da frustração amorosa. 

Saí  do  carro, fiz as compras que precisava, voltei para casa, encarei a possibilidade de me preparar para as mudanças que viriam pouco a pouco nos anos seguintes, não tirei da  minha memória aquela voz com aquelas palavras. Durante décadas, fui vivendo e me transformando, enfrentei tantos  embates comigo mesma, mudei de casa, de amores, de trabalhos, de objetivos, fui buscando novos portos, virei viajante compulsiva, para ser talvez  muito   mais "minha" do que de qualquer  outra pessoa...

Em compensação, somente há uns meses  atrás, tomei coragem, entrei numa loja e comprei o cd  player com a  gravação do Ney,  pedi ao vendedor: quero aquela do Viajante, sabe qual é? o rapaz  estranhou, disse: -sei sim, senhora, mas é muito antiga, nem temos este  disco aqui na loja, mas vou encomendar e em 48  horas pode vir buscar...

Dois dias depois, lá fui eu, embora tivessem se passado 20 anos, lá fui eu, sentindo-me tola como uma viajante, agora solitária e solteirinha, vivendo a vida de um pássaro agora com asas, rainha da coragem, deixando no museu da minha própria história, toda a covardia que um dia me  deixara prisioneira de  um momento   em que eu julgava poder viver modelos que não sou modelos, são prisões, lá estava  eu,  na loja de som, adquirindo, finalmente, a versão da voz do Ney, para ouvir em casa, com calma, e com júbilo, festejando a música que mudou minha vida.

                                                 Cida  Torneros

2 comentários:

Anônimo disse...

Engraçado que para mim essa música significa a minha paralisia diante da vida e a angústias, por pura incapacidade, de experimentar. Para mim é muito tarde para gritar que arde no maior ardor. Continuo com as cercas com que insisto em me defender.

Francisco Ari disse...

Quem escreve o que escreveu, na rara oportunidade de se encontrar e responder "ao momento na vida", motivada pela melodia e letra "Viajante" na genial interpretação de Ney Matogrosso, revela-se uma pessoa rica e bela por dentro.
O discorrer dessa "viagem" estática que se transformou por um acaso, demonstrou que somos todos capazes de dar a virada na vida pessoal no momento de crise para um recomeço.