Naquele tempo, eles moravam numa casa grande, com quintal arborizado, no subúrbio que marcou sua infância feliz. Como eram bons aqueles Natais, de folguedos e birnquedos, família e vizinhos, amigos e simpatícos agregados, trocando abraços, sorrisos e pratos saborosos.
Saudade das rabanadas da portuguesa Filomena, dos bolinhos de bacalhau feitos carinhosamente pela vó Luzia, e como era delicioso o frango com lentilhas que a mãe Maria preparava. Vinham em ondas aquelas imagens de pessoas e lugares, evoluindo para a sua adolescência, seus primeiros amores e finalmente, abrindo o baú, nas tardes lentas da velhice, pegava as fotos amareladas do seu casamento com Joaquim e dos seus filhos meninos, Luizinho e Bentinho.
Agora, morando num asilo para velhice, Anita se desmancha em sentimentos de saudade, justamente nessa época natalina. Sabe que a sensibilidade lhe aflora ao peito, faz dela uma criatura mole que nem manteiga derretida, a pensar no tempo que correu célere e no quanto foi possível aproveitar a vida, lutar pela criação dos filhos, tê-los visto se formarem, ter segurado nos braços netos que também tinham crescido.
A doce Anita de oitenta e tantos anos, ali, naquela casa de repouso e senilidade, traz dentro de si, muitos Natais presos no peito, e, quando as atendentes chamam para a ceia da noite Santa, busca enfeitar-se com seu melhor vestido, o azul royal, de golinha rendada e branca, para juntar-se à sua nova família, senhoras e senhores que dividem com ela, seus momentos de lazer e de oração, refeições frugazes e a certeza do dever curmprido.
Conclama a todos que rezem agradecendo aquela comida especial e tão bem cuidada, sorri em reverência a cada amigo ou amiga que lhe cumprimenta. Repete um 'Feliz Natal' que imagina seja o mesmo que seus filhos e netos estejam desejando aos amigos e amigas neste momento em algum lugar, apesar de não receber há muito sua visita, mas lhe mandaram presentes, como chinelos, sabonetes e colônias. Um motorista veio trazer uns dias antes.
Explicou que todos tinham viagem marcada e que telefonariam, se pudessem, no dia de Natal, para ela.
Anita pensa que já tem um bisneto que nunca viu, ele deve ter uns cinco anos, ela reflete.
Tudo bem, Anita pensa: - Deixai-os viver Senhor Jesus, e protejei-os, meu Pai do Céu. Meus filhos ainda são meninos para mim, apesar de cinquentões. E meus netos, já na casa dos trinta, têm muitas responsabilidades, filhos e trabalho, tenho que entender sua falta de tempo e só quero que todos estejam felizes, nesta Noite, como eu estou, aqui, tão bem cuidada.
Repentinamente, como se fosse um Anjinho de Natal eis que surge no salão de refeições do asilo, um menino risonho, correndo, que dispara na direção da vovó Anita, para abraçá-la, o que faz com que todos interrompam o jantar e observem a cena
- Quem é você, lindo pequerrucho? Anita indaga, extendendo as mãos e acolhendo o infante arfante.
- Vc é minha vó Anita, eu vi no retrato que a meu vô Bento me mostrou. Eu pergunto a ele todo dia onde vc mora. E hoje, que é Natal, pedi a ele que queria ver a minha vó Anita... Tô aqui, na sua casa, né? vim passar o Natal com vc, né? vc quer esperar o Papai Noel comigo?
Anita ri... vê que agora entram no refeitório, seu filho Bento, a nora, os pais do guri risonho, seu neto e esposa, e os observa, com certa perplexidade, pois há muitos Natais que não os vê e pensava que estavam todos a viajar nos feriados de final de ano, conforme lhe dissera o potador dos presentinhos, dias antes.
Mas, Bento, com jeito de filho arrependido, vem dizer à mãe, emocionado, que o pequeno Joaquinzinho não aceitou viajar. Convenceu a todos a irem visitar a bisavó, que ele vivia beijando no retrato, chegou a ficar febril a repetir que só queria ver a vó Anita no Natal, e esperar, com ela, pela chegada do Papai Noel.
Anita foi aplaudida pelos companheiros e companheiras de asilo. Agradeceu a visita, abraçou o bisneto, o filho e toda a família, convidou-os a sentarem à mesa. Manteve o menino no colo, que a acariciava, enquanto se pergunta, internamente: - Quem não traz seus Natais dentro do peito?
Este Natal é mais um deles, que ela jamais esquecerá, e fará parte da lista de Natais do Quinzinho, daqui a algumas décadas, com certeza.
Aparecida Torneros