Minhas invejas (e agora saudades) da Zélia Gattai
artigo publicado 8/9/07, A Tarde, Bahia
APARECIDA TORNEROS
Repentinamente (ou será que seria pecadoramente?), me surpreendo cheia de inveja de uma filha de imigrantes italianos chamada Zélia Gattai.
Despudoradamente, sempre a olhei com ciúmes, porque era amada pelo Amado que amo até hoje, desde que, menina-moça, li Mar Morto e, dali em diante, me embrenhei por dentro das palavras dele. Comprei logo que consegui meu primeiro emprego, à prestação, a coleção inteira, nos idos dos anos 60, e me orgulhava de tê-la, em capas azuis e vermelhas. Enquanto lia e contava aos amigos sobre os personagens que me povoavam de sonhos, a vida andava insípida, apesar da juventude, pois havia cheiro de sangue nos subterrâneos da liberdade, e a coisa aqui estava preta, como diria, em seguida a canção do Chico.
Mas a inveja saudável da Zélia aumentou quando descobri o nome da filha dela. Era o que escolhi para a filha que nunca tive. O mesmo da filha de Picasso, o sonoro voejar de uma pomba em céu de brigadeiro, como devo ter sonhado com a carinha da Paloma que pretendia ter na barriga, fruto de um grande amor, que não chegou a tempo. E de algum pequeno amor, nasceu um filho homem, que me apaziguou o desejo da maternidade, me deu o exato sabor de estar feliz por contribuir para a perpetuação da espécie.
Para compensar meu frustrado intento, num Natal, meu ex-marido presenteou-me com boneca enorme, que batizei Paloma Gattai Amado Picasso Torneros e que vive no meu quarto, com olhar azul. Seus ancestrais são cariocas, baianos, italianos, espanhóis, paulistas, africanos, e, há pouco tempo, descobri que a criaturinha se sente também portuguesa, pois fica linda quando a cubro de vermelho e verde, nas trocas constantes de vestimentas, que, como adolescente, ainda, faço questão de manter a tradição, seguindo rituais femininos que só as meninas entendem. Zélia é menina, e, certamente, seria a primeira a compreender tal hábito que é a personificação da maternidade incrustada em qualquer mulher que ama.
Por isso e muito mais, a Zélia foi me adensando, como referência, aquele seu jeito pleno de ser a escolhida para companheira do homem que a amava tão grandemente, e isso, qual fêmea consciente não almeja e se pega espelhando? Talvez eu tenha cortado as madeixas bem curtinhas, como as dela, em momento de grande deferência, certa de que aquele ar de menina eterna que a acompanha e lhe marca o sorriso plácido, é como a assinatura do documento comprobatório da felicidade que um ser vem construir na terra. O Jorge voou primeiro nas asas da sua história de grandeza, fez-se escritor de fama internacional, nunca abriu mão da companhia dela, mas ela era única, e o é, com seus escritos premiados por aí, e suas memórias anarquistas, graças ao bom Deus.
Nunca senti seu abraço de verdade, mas a vida toda a abraço em pensamento e, toda vez que leio sobre suas internações, oro aos orixás para que lhe concedam mais tempo, para que ela escreva mais um libelo de sabedoria e me cause mais um naco pecaminoso de inveja salutar, a sadia admiração que provoca com o seu Memorial do Amor, que é nosso, afinal, que é o precioso talento da escritora a nos brindar com instantes transformados em tesouro literário. Por fim, Zélia, amada, vou desinvejá-la, para que a reverencie como merece, com a humildade de quem só lhe deseja saúde e lhe pede somente que se cuide, se reabasteça de quietude, enquanto nos prepara para novas viagens com suas letras, frases, vida contada em pílulas a serem ingeridas como a salvação.
Nenhum comentário:
Postar um comentário