segunda-feira, 8 de setembro de 2014

O Romance do Oásis Perdido, capítulo 3












O Romance do Oásis Perdido

Nem era importante pensar naqueles tempos, porque eles ficaram para trás.  Esta reflexão inundava, repetidamente, o raciocínio tão experiente e prático da jornalista acostumada a cobrir guerras e viajar pelo mundo, por quase quatro décadas. Seu objetivo profissional sempre fora direcionado para o foco da informação enxuta, clara e reveladora, acrescida de detalhes que denunciassem injustiças, com doses realistas, sem deixar de fora algumas pinceladas de um idealismo romântico sobre um mundo onde a paz ainda fosse possível.

Nunca se abstivera de mostrar, através das suas coberturas, as contradições de uma humanidade infestada de egoísmos, falsidades, sede de poderes, colonizações econômicas e culturais muitas vezes cruéis, mas, em contraponto, todas as vezes em que teve chance, divulgou o oásis de programas humanitários espalhados pelo mundo, suas figuras dedicadas em forma de seres quase angelicais, pessoas que abandonavam suas próprias vidas e se entregavam a cuidar dos outros, dos necessitados, dos abandonados, dos doentes, das vítimas das guerras, dos mutilados em corpos e almas, das crianças órfãs de atenção e carinho, daqueles que se viam mergulhados em verdadeiros desertos sem perspectivas de horizontes alcançáveis.

Louise, mais de 50 anos de idade, ainda empertigada e lúcida, era considerada uma boa exemplar representante da sua classe profissional, respeitada no seu meio e temida pelos concorrentes, disputada pelas agências de notícias, trazia histórias que dariam para se produzir muitos livros, muitos filmes, ela sabia disso, tinha a plena consciência do quanto seu caminho era inusitado em relação à maioria das mulheres da sua geração.

Ataques, bombardeios, guerras civis, guerras institucionais, tantos armamentos caros, ela presenciara, ao longo de décadas, movimentos de governos e de civis, alternadamente, na busca de valorização das suas performances. Anotava muitos números, os gastos armamentistas, a sofisticação das ogivas nucleares, a dispendiosa agressividade para que investimentos megalômanos mantivessem forças armadas treinadas e capacitadas, em tempo integral, em regime de prontidão constante, alvo de permanente rede de exercícios militares, pelos mares, pelos ares, em terra, nas navegações cibernéticas, o mundo fluía ampliando sua possibilidade belicista em torno de complexidade e operacionalidade de sistemas renovados e globalizados.

Era exímia observadora dos índices de IDH dos países onde trabalhava, checava e revisava os dados sobre as populações, principalmente de saúde, educação, além do acesso a condições sanitárias, acompanhamento de infância, justiça e criminalidade, ela colecionava documentos, vivia comparando estatísticas, não se dava ao luxo de desperdiçar nenhuma informação, pois mesmo posta de lado, em alguma ocasião poderia ser útil e desvendar mistérios.

Nas lutas mais modernas, os grupos eram multi-étnicos, de várias nacionalidades, perfilados em voluntarismo compensado em boa remuneração ou ainda, pelo consciente exercício da progressão de carreiras em bases militares, em regimentos adestrados, imbuídos de um espírito nacionalista exacerbado,  ainda mantido à custa de valores de guerreiros que assim o fizeram séculos atrás.
Louise era cética em relação aos chamados acordos de paz. Ela comentava, volta e meia, com integrantes dos seus círculos familiares e sociais, que os tais acordos eram muito mais ajustes econômicos em torno de equilíbrio de forças do que propriamente a maquiagem que assumiam publicamente de que se pudesse cessar-fogo, em detrimento de milhões de dólares ou euros que se multiplicaram no mundo como conseqüência das guerras, maiores ou menores, do fomento de revoluções ou da costurada e orquestrada caminhada que visava sobretudo lucros de investidores ou lideranças para nações consideradas ápices de poder e comércio.

Nas duas últimas décadas, ela analisava documentos e armazenava um arquivo compatível com a certeza de que um dia fecharia os pontos daquela rede aparentemente inatingível de fontes para ordens de comando e estopins de pólvoras e bombas em pontos estrategicamente espalhados num mundo em crise, especialmente em locais de riquezas minerais que aguçavam os opressores para tomarem a si, o viver frágil dos potenciais oprimidos, uma legião de seres à deriva, vítimas de um sistema economicamente pré-fabricado, imposto ao cidadão comum habitante do tal mundo moderno, impregnado de injustiças, coalhado de falcatruas, mentiras, jogadas, truques, jogos de cartas marcadas, Louise se entediava com a repetição do modelo, e se admirava que os povos não eclodissem em revoltas conscientes contra seus ditadores, governantes desonestos, líderes duvidosos,

tantos mais  que mantinham mentes de desavisados ou ingênuos, em situação de rendição perene.

- Vamos ao Egito, é lá que a conscientização parece ter chegado primeiro, depois de tanto tempo, disse Louise ao telefone, em conversa com seu atual companheiro de profissão, um bom cinegrafista, corajoso e experiente, com quem ela produzia reportagens para vender a agências noticiosas, mesmo sabendo que muito do que escrevia não era aproveitado, intencionalmente, e que o filtro de interesses vários, remexia imagens e letras, dando a conhecer uma parte menor do seu material, a que o público teria acesso, ainda que se permitisse tomar conhecimento do que ela chamava de “a ponta do iceberg que iria derrubar o Titanic”.

Maurice era um francês acostumado ao trabalho de risco, poucos anos mais novo que ela, admirava a garra daquela mulher e confiava na sua capacidade investigativa com faro “ reporteiro”  cultivado à custa de cicatrizes, renúncias, momentos difíceis, sagacidade para entrevistar criaturas escorregadias e cínicas, ele pensava no teor de paciência desenvolvida por Louise para conquistar entrevistados que se traíssem nas próprias respostas, ampliando o tal fio da meada, aquele que ela julgava poderia ser exposto para elucidar a história triste de colonizadores e colonizados, um quadro cansativo de disputas por espaços , riquezas, etc. etc.

- Ok, partimos amanhã? Providencie nossos bilhetes, encontro você bem cedo no Charles De Gaulle, destino Cairo, apenas me avise o horário do nosso vôo.

A voz dele denotava a adrenalina surgindo das entranhas, comum ao seu perfil, todas as vezes que saíam em direção ao perigoso ato de ir ao centro do bombardeio para colher melhores esclarecimentos.

A noite chegou intensa ao coração de Louise. Ia novamente deixar seu apartamento aconchegante em Paris, na incerteza da volta, pois a guerra profissional fizera dela uma soldada num campo de batalha, arriscando-se pela colheita da informação, enquanto se orgulhava de não permanecer protegida entre quatro paredes de um lar mediano, e preferia participar do front, ver de perto o movimento social que enseja mudanças e geralmente produz mortes, sangues, sofrimentos, coisas com que ela habituou-se a conviver, apesar de ainda se esforçar para conter emoções ou controlar reações de medo ou de tristeza.

Sabia que o caminho a trilhar era longo, as faces do deserto onde se refugiava para pensar, o seu próprio deserto interior, eram maquiadas com o sorriso da aceitação, encontravam-se encobertas por camadas de máscaras protetoras, Louise apenas se perguntou “até quando” e adormeceu.


Os sonhos com o oásis voltaram. Eram sonhos que a projetavam num lugar cheio de palmeiras, calorento, mas com vento uivante, ali ela via alguém gesticulando, roupa de beduíno, rosto semi coberto, o homem do sonho era moreno, tinha olhos profundos, mas cabeça e boca ocultas, voz dissonante, falava árabe, que Louise não decifrava quase nada.

Sempre que acordava desse sonho, ela tinha a exata sensação de que tudo era premonição em sua mente cansada, e que, talvez, algum dia, ela realmente se visse naquele ponto da Terra, confirmando e esclarecendo a magia do sonho que seu inconsciente compunha em noites de tensão, tornando-a personagem de um enredo intrigante.

De manhã, partiram para o Cairo, sabiam que lá a coisa estava feia, explosões e massacres, civis perseguidos, forças da ditadura resistindo aos rebeldes, o povo nas ruas, a população enfurecida pedindo justiça.

Cida Torneros

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