Maracanã

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quarta-feira, 2 de abril de 2014

Um tuaregue no meu quintal no verão de 2010



Enviada em: quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Um “tuaregue” no meu quintal...



Tá certo que o calor de mais de 40 graus deste verão de 2010 esquenta a cabeça de qualquer cristão, o que dirá de uma “cigana peregrina”, como eu, do tipo capaz de sentir o coração derretido como um sorvete mijão, a cada olhar de pedinte, que o meu misterioso visitante anda a me lançar, ultimamente.



É que  um “tuaregue” passou a visitar o meu quintal, sem mais nem menos, vindo talvez desde o Saara, envolto em manto que lhe cobre a cabeça, mas lhe deixa livre o fundo de um olho atrevido, que me espreita e faz enternecer.  Ele é alto e forte, sorri com o canto dos lábios, tem voz anestesiante e fala através de linguagens de sinais, em tom baixo emite sons de um idioma que tento decifrar. Faz gestos comuns a adolescentes assustados. Usa até gírias que nem conheço direito, tento traduzir, como posso e consigo, pois necessito compreender os porquês das suas vindas a mim, no calor dos meus anos incrédulos, quando eu pensava que já tinha visto de tudo e não me restava aprender quase nada além.





Às vezes penso que ele é um espírito antigo querendo me comunicar algo de sobrenatural.  Claro, que, apesar de nunca ter pisado oficialmente nas areias ferventes dos desertos africanos, não me é custoso  imaginar como sejam as miragens, quando a mente ensandecida sonha com oásis verdejantes, ventos que refrescam corpos suados, águas que dessedentam gargantas sequiosas de líquido revigorante.



O duro deve ser quando se é surpreendido pela cruel realidade após a visão fantástica do sonho, e se descobre que aquelas imagens deliciosas não passaram de produção prodigiosa e defensiva de imaginação fértil em solo infértil, ou melhor, uma grande postura sobrevivente, em momento crucial e devastador, a loucura que é atravessar um deserto onde o infinito é tudo, o horizonte é tudo, o céu e o chão de areia são quase nada, e o mundo se resume a dias e noites de solidão, propícia à meditação e ao jejum.



Pois não é que no meu quintal apareceu um “tuaregue”?



Custei a crer, fui sentindo sua presença bem devagarinho. Primeiro, observei seu andar desengonçado a circundar o meu jardim, tive dele a impressão de que me queria como uma mulher para se levar na corcova de um camelo. Mas, lembrei que  no Marrocos, por exemplo, eles trocam as mulheres por camelos valiosos, e me vi metida numa história pra lá de Marraquesh, onde entraria numa roubada.



Eu me vi, então,  como uma roubada criatura, abduzida por um berbere de origem mulçumana, com sua questionável e milenar sede de possessividade. Era a sua chance de me conduzir a uma dessas tendas recheadas com almofadas, tão macias e sedosas, dando-me sucos afrodisíacos para beber ou me induzindo a comer tâmaras secas como se fossem uvas frescas. Habituei-me então a usar vestidos que aderissem às minhas curvas mas que não denunciassem detalhes dos meus contornos. Inspirei-me nas burkas, aliciei colares e brincos para me protegerem dos maus olhados, pintei de vermelho as unhas dos pés, ergui meu pescoço em direção ao azul e me concentrei na espera do que poderia acontecer a qualquer instante.



Viajei na maionese, afinal, como dizem minhas amigas tão namoradeiras quanto eu, há períodos de entre safra e há outros, de intensa força da natureza, em que chove na nossa horta.  Foi o que concluí, “tá chovendo na minha horta, um guerreiro do deserto, intenso e instigante, vem ao meu quintal e diz que me quer”.



O que posso esperar ou lhe oferecer? Pergunto se toma café, bebida comum na terra brasilis, um pouco diferente dos seus habituais chás de ervas e seu apurado gosto pela menta. Ele, a princípio, ao pegar a caneca que tem o símbolo de um time de futebol, teme que seja uma inscrição religiosa, pergunta-me do que se trata apontando o desenho vermelho e branco. Titubeia ao segurar o objeto, onde lhe  sirvo a bebida quente, escura e perfumada, que acabo de ordenar ao “gênio” da cafeteira elétrica que atendeu um dos meus três pedidos a que tenho direito nesta manhã ensolarada de uma sexta-feira. Um gole de café cheiroso é meu cartão de boas vindas ao visitante que veio de longe.



Esclareço que pode pegar sem susto na porcelana antiga, é herança do meu pai e o escudo é de um tradicional clube carioca, que mora no coração de todo torcedor não fanático. Refiro-me ao América, agremiação pela qual tenho carinho especial. Ele relaxa, acena para Alah em agradecimento, bebe de um só gole, devolve-me a xícara, porém, maliciosamente, encosta seus dedos nos meus, num gesto que dura um segundo premeditado, o que me passa uma corrente eletrificada causadora de um arrepio extra-corpóreo, sacudindo-me as entranhas e o espírito vagante, unindo extremos que funcionam como fios terra, ligando-me a algo tão novo quanto surpreendente, a partir de então.



Tento voltar ao meu estado emocional de equilíbrio consciente. Nada, ando flutuando ao sabor da materialização que este ser assumiu, sua aura e energia me confundem. Apelo para meus estudos de poder positivo da mente,“sapeco”  discurso de professora universitária, digo que ele está em terra de estranhos, falo de distâncias nossas, impossibilidades para mantermos qualquer tipo de relacionamento, lembro que somos como a Terra e o Sol, Cristãos e Mulçumanos, agradeço sua visita inesperada, ainda consigo ouvi-lo falar que sonhou comigo, mas entro, fecho a porta, escondo-me atrás da vidraça, cerro as cortinas. Fico muda. Aguardo que desista.



Ando cansada de conversas de homens de lugares distantes. Já conheço as manhas dos americanos, italianos, franceses, portugueses, brasileiros de outras cidades, espanhóis, e agora, só me faltava essa, um habitante tão nômade, de costumes tão díspares a me conquistar com sua perseverança, como dizem por aí, a me comer pelas beiras.



Muitas horas e dias depois, ouso olhar de novo o meu quintal. Lá está o vulto dele. Altivo, de pé, manto enrolado na cabeça, sorriso contido, olhar direcionado à minha porta. – Ainda estás aí, “Tuaregue”? Não vais embora? ( pergunto, entre tímida e curiosa)



Sua resposta é uma corrida em minha direção. Um feitiço vindo com os ventos arenosos perpassa a minha solidão. Seu abraço me detona uma bomba interior, não consigo conter a explosão, um gosto de antiguidade me toma a saliva, meus gemidos são característicos de corridas na selva, quando a presa ainda pensa em fugir do caçador atrevido,  acho que um frescor se entremeia ao calor dos nossos dedos, não sei mais quem sou ou quem é ele.



Ele me “pegou”.



Invadiu minha casa, adentrou com seus cânticos o lugar onde me protejo dos assédios humanos, sabe tanto de mim que nem sei como negar-lhe o primeiro beijo, que ele me rouba na cozinha, junto da pia, cena que me fez recordar o filme “Atração fatal”. Mas alguém das terras de Muamar Kadafi, saberia o significado de um filme tão way of life norte americano?  Nesse instante mágico, penso comigo: “estou fu...”,  afinal, não é todo dia que um “tuaregue” de linhagem principesca, com ares de mandingueiro, como o daquela música do Benjor que a Gal gravou nos anos 70, surge assim no caminho de uma escritora de contos fantasiosos. Rendo-me.



Entretanto, só que lhe  peço uma única coisa. E ele atende ao meu pedido, aturdido, mas galhofeiro. É a primeira vez que eu  testemunho sua sonora gargalhada. Ele ri, extasiado, antes de cumprir o que lhe  imploro, no auge da doidice, que já nos conduz ao quarto. Coincidentemente, reconheço, na minha cama, as mesmas almofadas macias e coloridas da tenda onde imaginei que ele me  levaria.



Sinto que me belisca com prazer, morde-me com fúria, sacode-me com animalidade. Pedi que me provasse que aquilo estava realmente acontecendo, não era miragem do deserto e que estávamos acordados. – Belisca-me, pra saber se estou mesmo viva!



A partir desse dia, quando sinto o odor almiscarado que a brisa faz entrar pela janela do meu quarto-escritório, corro até a porta, abro e o revejo ali, muitas vezes, mudo, noutras, com palavras sussurradas, à espera de que o deixe entrar novamente, para que vivamos o que nos cabe viver, e sonhemos, sim, o que nos é direito sonhar, no calor alucinante de um tórrido verão que nos uniu.



Ele existe mesmo e tá morando no meu quintal, montando guarda, tem ares de “meu dono”, acho que veio para tomar conta de mim. Será miragem?  Na sombra da noite, ele some, na luz do dia, reaparece... como o Sol o “Tuaregue” me ilumina...me aquece e me devolve a sede de viver...



                                      Cida Torneros

                                        Fevereiro 2010



Aparecida Torneros

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