terça-feira, 13 de abril de 2010

A despedida, a carta de saudade, a chegada do amor... ( um conto)




O verão se despedira com braveza. Muita chuva e muito caos. Enchentes marcaram a chegada do outono avassalador. Tragédias, mortes, corações sofridos, terremotos, os ecos do Haiti, bem aqui, no meu pedaço de chão. Assim pensava a mulher que se isolava num pequeno castelo de sonhos antigos. Era justo que ele fugisse para surfar nas ondas fortes de algum Havaí, também ali perto, alguns quilômetros acima, alguns graus centígrados abaixo, na costa leste, abaixo do Equador entretanto, em águas mais cálidas , com alguma sorte para enfrentar a fúria dos oceanos, a beleza múltipla dos tubos perfeitos em cujo vácuo talvez fosse possível não pensar em mais nada, além da vida fluida, da vida transformada em água, a mesma vida que de sólida teria somente a imagem refeita depois da tempestade.


O amor havia chegado sem pedir, como sempre, qualquer tipo de licença. Era marcante sua presença, trazia, mais uma vez, o volume inquietante de sentidos aflorados, ebulição hormonal incontestável, o amor provoca insônia, desfaz tratados, interfere na frequência cardíaca, emudece as frases feitas, constrói expressões verbais alienadas e refaz expressões faciais de encantamento. Também, como um mago impiedoso, o amor cria expressões corporais inimagináveis, serpenteia movimentos pélvicos, multiplica braços e enreda pernas elásticas, encurta distâncias entre bocas e olhos, o amor entontece, entorta, entreabre, entesa, interage, internaliza, inferniza, induz e enleva.

Enquanto ele surfava livremente pelas marolas ao vento, ela adentrava pelos pensamentos intensos, decidira despedir-se dele, apesar da chegada do amor, não era por causa disso, mas era além disso, nem saberia explicar, talvez nem fosse preciso, e se fosse, encontraria uma forma de dizer o que acontecia dentro e fora dela, pensou então num linda carta de saudade.

Sim, esse era o melhor caminho. Falar do quanto a saudade imensa, as muitas ramificações de saudades várias, os acompanhariam pela eternidade. Sentiriam saudades daquele primeiro olhar profundo, e do sorriso no canto da boca inesquecível, também das mãos que se entrelaçaram pela primeira vez, e do grito apaixonado de algum momento selvagem. Lembrariam momentos, lugares, recantos, gestos, palavras, recordariam diálogos, acolheriam silêncios, confundiriam até o que nem sequer teriam vivido, com o que sonharam viver. O jantar à luz de velas, o buquê de flores que ele enviou, a manhã quando esperaram pelo nascer do Sol, sentados na areia da praia, aquela caminhada em volta da lagoa, o sorvete que dividiram naquela tarde tórrida, a foto que tiraram abraçadinhos na noite de lua cheia. Quantas memórias do que viveram, sonharam e do que nem conseguiram realizar, mas, no fundo, foi-lhes facultado sentir e projetar. A viagem para o outro país. Aquela sensação de que só tinham um ao outro no mundo inteiro e a melhor gargalhada que deram juntos na madrugada em que, juntos, quebraram a cama do hotel.


Ela descreveria tudo na carta, carinhosamente, agradecendo cada minuto de felicidade que passaram juntos. O amor trouxera para ambos o efeito catalisador que proporciona atingir a paz que mereciam.


Em paz, sim, ela e ele se amaram em paz, sem conflitos, com a tranquilidade dos honestos que são fiéis, que se entregam de corpo e alma, que sabem exatamente qual o momento de desperdir-se antes de qualquer dor ou sofrimento.

Para fechar a carta de saudade, uma despedida calma, serena, repleta de um amor maduro e plácido, um amor capaz de renúncia, pleno de felicidade e aconchego, um amor saudável que não prende, que solta, que deixa ir, que se deixa levar pelo tempo, que se doa à saudade.


Depois de escrita a carta, ela enviaria pelo correio, seria mais tradicional, ele ia receber sua mensagem, para reler, com certeza, numa noite dessas, muito tempo depois, sentindo o perfume dela na folha amarelada, e observando o beijo de batom que os lábios dela ali deixaram impressos como assinatura.


Melhor assim. Uma carta assinada com um beijo, dedicada a um amor que viera no vaivem das ondas do mar, um amor que pegou seus corações, tumultuou seus pensamentos, invadiu seus sentimentos, fez história em suas vidas.

Ele continuou a surfar e ela seguiu reclusa em seus pensamentos. Ambos permaneceram felizes. Nunca mais se afastaram, porque um ficou dentro do outro para sempre, cada qual no seu mundo particular.


Cida Torneros

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