sábado, 22 de agosto de 2009

Espanha, cuida de mim...



A foto do casamento da Vó Carmen com Vô Antonio passava de mão em mão, os bisnetos admirados, aquela imagem de 1920, de um casal de imigrantes, se unindo no Brasil para formar uma nova família. Quantos sonhos deviam ter e o quanto deviam acreditar no futuro, aqui, em terra distante das suas de origem, Espanha e Portugal. A tarde-noite, em 2007, no dia em que se comemorava o aniversário do bisneto mais velho, Leandro, filho da neta mais velha, Maria Aparecida, por sua vez, filha do filho mais velho, Ulysses...

Mas, o melhor da festa era o clima de alegria e de amor curativo. Primos, primas, tios, tias, sobrinhos, sobrinhas, cunhados, cunhadas, noras, genros, um grupo que representava outro universo maior, por aí espalhado, composto por alguns presentes em espírito, outros, sintonizados em pensamento, ou ainda aqueles irmanados em ancestralidade, em energia construtiva.

Muitas outras fotos foram surgindo das caixinhas de surpresas que as tias trouxeram para o encontro. Havia um altar improvisado, em mesa com toalha de renda, com flores amarelas, quadro representativo com uma dançarina espanhola de vestido embabadado, vermelho, o porta-retrato com a foto da avó, que pertencera ao seu irmão Obidio, e ainda, uns livros e jornais , sobre história e artes ibéricas, além de leques rendados destinados às mãos das bailarinas.

A festa de aniversário era ao mesmo tempo a confraternização do sangue que corre nas veias dos descendentes de Carmen. O evento culminou com a apresentação das mulheres, que se tranformaram em dançarinas, reunindo as gerações, com espanholas de saias longas, xales floridos, flores nos cabelos, risos desprendidos, mãos e pés saltitantes, felicidade nos olhares e intenso brilho nas auras espirituais, a roda em cujo centro se exorcisavam as dores e renasciam as esperanças.

Nada é mais pujante que a união pelo amor. Quando se completou o ciclo, ao cantar parabéns para o professor Leandro, a família ali estava, parabenizando a si mesma, por dois motivos: existir e se amar tanto assim.
Aparecida Torneros

Epanha, cuida de mim

Espanha, me chama, me canta, me espanta
me encanta e me pranteia, na canção e na saudade
tua misteriosa magia me entontence e invade,
Espanha, me apanha na curva do mar da Galícia,
me embarca no porto rumo a Barcelona, me esvazia
do pote de euforia e me faz dançar em Andaluzia...
Espanha, me puxa e me prende, me fascina e ilumina,
me engana e me mostra teu lado mais duro, tuas dores
que toureias nas praças dos milhares de amores
que se vão, se superam, se matam e renascem, qual sina
dos navegantes buscadores de terras, de mundos distantes,
Espanha, me põe um sinal de bruxaria na testa, me empresta
tua poesia, tua arte, teus pintores, tuas infinitas cores,
me traz de volta ao céu, e me deixes provar do inferno
que tua força maior, terror dos temores, das bombas,
das guerras, os ditadores de mierda, injustiças e abandonos...
Espanha, cuida de mim, de ti mesma, dos teus muitos donos.
Aparecida Torneros


España en el Corazón
A Espanha é uma coisa de tripa.
Por que "Espanha no coração"?
Por essa víscer é que vieram
São Franco e o séquito de Sãos.

A Espanha é uma coisa de tripa.
O coração é só uma parte
da tripa que faz o espanhol:
é a que bate o alerta e o alarme.

A Espanha é uma coisa de tripa,
do que mais abaixo do estômago;
a Espanha está na cintura
que o toureiro oferece ao touro,

é que é de donde o andaluz sabe
fazer subir seu cantar tenso,
a expressão, explosão, de tudo
que sa faz na beira do extremo.

Das tripas fundas, das de abaixo
do que se chama o baixo-ventre,
que põem os homens de pé,
e o espanhol especialmente.

Dessa tripa de mais abaixo,
como escrever sem palavrão?
A espanha é cosia de colhão,
o que o saburrento Neruda
não entendeu, pois preferiu
coração, sentimental e puta.

A Espanha não teme essa tripa;
dela é a linguagem que ela quer,
toda Espanha ( não sei é como
chamar o colhão da mulher).

João Cabral de Melo Neto

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