Maracanã

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sexta-feira, 14 de agosto de 2009

ECOS DE GALÍCIA...1910/2009...









ECOS DE GALÍCIA...

Chegamos à Galícia, eu, minhas amigas Regina e Rosária, e sua filha Tatiana. Do Rio de Janeiro, descemos em Madri e logo pegamos a conexão de um vôo que durou menos de uma hora para Vigo. Ali, na cidade portuária, nos encantamos com sua organização, boa comida, gente educada e a carga histórica muito forte que paira nos seus ares. Zazá também ia em busca da ancestralidade, assim como eu. No segundo dia, logo, conseguimos visitar Orense e Verin ( lugares dos nossos pais, avós e bisavós), onde resgatamos um pouco da própria história de descendentes de imigrantes galegos, os mesmos que vieram fazer as Américas, tão bem descritos num livro memorável da escritora brasileira Nélida Piñon, República dos Sonhos.

Por alguns dias na Galícia, nós quatro nos identificamos com sua gente e seus costumes, adoramos ir a Santiago de Compostela, passar por Pontevedra, ouvir suas histórias, conviver com gente como o Ramon, por exemplo, galego típico, que nos atendeu com seus serviços de motorista e que se tornou grande amigo.

A escultura dos cavalos alados, no centro de Vigo, não me sai da lembrança, é como um símbolo do quanto um povo pode cavalgar, voar e navegar adelante, conquistando espaços nesse mundo de Deus.

Ano passado, depois de lançar meu livro onde narro parte da história da minha avó e do meu tio-avô ( capítulo reproduzido aí abaixo), fui a Nova York, onde encontrei Jeanne Marie, neta do Tio Obidio. Somos netas de dois irmãos imigrantes, ela vive nos Estados Unidos, nasceu lá, é cidadã americana integrada ao seu país, com marido e filhos. Eu vivo aqui, sou cidadã brasileira inserida na cultura da minha terra, tenho um filho.

No dia em que nos encontramos, ela completava 44 anos, levou a família e passeamos juntos pelo Central Park, nos divertimos, fomos almoçar, trocamos presentes, sorrisos, abraços, nosso sangue se identificava. Nossos bisavós espanhóis, pais de Carmen e Obidio, ficaram na Galícia e nunca mais viram os filhos e sequer tiveram chance de conhecer seus netos, nove, ao todo, e muito menos souberam da existência dos bisnetos. Somos muitos espalhados pelo Brasil e pela América.

Antonio e Manuela ficaram sozinhos, no pequeno lugarejo, Rasela, onde fui, finalmente, em maio de 2009. Senti-me representante de todos os que estão por aí espalhados, os que nem sabem sobre suas vidas, como eu pude saber. Para embarcar, levei comigo um maço de cartas envelhecidas, amareladas e desbotadas, escritas a pena, pelo meu bisavô Antonio, todas endereçadas a Carmen, a filha que viveu no Brasil. As cartas datam de 1910 até 1935, são dezenas, e em todas, o amor é citado como o grande elo que uniu este homem aos seus descendentes. Também, cada escrito seu terminava com as saudações que ele transmitia enviadas pela esposa, a Manuela, que morreu num convento, isso eu soube, ao visitar o lugar, através de um senhor velhinho que os conheceu, sr. José Freiria.

Resolvi entrar no pequeno cemitério do lugar, não encontrei uma campa com seus nomes, mas rezei ali, em sua homenagem. Agradeci o quanto de amor à vida, eles legaram para nós todos, e nos fizeram ser o que somos hoje, pessoas que reproduzem sua luta, estejamos em Nova York ou no Rio de Janeiro.

Em determinado instante, não me contive, e na pequena capela do cemitério vazio, puxei os cordões da campana, toquei os sinos, minhas amigas ficaram apreensivas pois num lugar tão ermo, o som poderia assustar os moradores. O que ocorreu foi, na verdade, uma saudação aos meus ancestrais, que ficou gravada nos meus ouvidos, reverberando, festejando, nosso reencontro. Pude proclamar os ecos de uma descendente de Antonio e Manuela que voltou, pisou na terra que os acolheu e onde viveram, eu me senti assim, resgatando o amor deles pelas sementes que espalharam no mundo.

Saí daquele lugar com a alma apaziguada. Parecia que cumprira um papel a mim destinado. Saudei os cânticos da minha meninice, aqueles que a abuela Carmen cantava, oriundos da sua terra, passei no Jusgado, pedi a cópia da certidão de nascimento dela, que já me chegou, via correio.

Vou dar entrada no pedido de cidadania espanhola, em homenagem a eles, Antonio, Manuela, Obidio e Carmen, criaturas de bem, semeadores de amor, por quem dobram os sinos da capelinha em Rasela, e de cujas almas soam os ecos de Galícia que agora me emocionam e me impulsionam a seguir em frente.
Maria Aparecida Torneros
14 de agosto de 2009








Carmen e Obidio - sou parte do enredo
(artigo publicado no livro A mulher necessária, em 2008)

Meu tio -avô só tinha 14 anos. Vivia naquela aldeiazinha do norte da Espanha, em condições de pobreza e sonhos. Seu principal sonho era rever a única irmã, que tinha emigrado para o Brasil, quando ele estava com 8 anos. Todos os dias, entre seus duros afazeres de cuidar da pequena plantação e pastorear as cabras, Obidio pensava no dia em que veria Carmen outravez. Fazia planos, queria mesmo era fugir daquela vida tão difícil. Nas noites geladas da Galícia do início do século XX, o jovenzinho ficava feliz quando chegava uma carta do Brasil, era sua Carmencita, a mana mais velha, que lhe contava sobre a América, um continente promissor, cheio de sol. Era disso que ele precisava. Do sol e da esperança. Mas, como viajar para tão longe sem dinheiro? Os velhos pais, cansados da lida, não poderiam ajudá-lo e nem abririam mão do filho que lhes restara para agrar as terras, guardar os animais sob a casa de pedra, acender o fogo da lareira, cuidar-lhes, afinal, já que a filha mulher em momento de coragem e doidice, tinha partido escondida, sozinha, para o Rio de Janeiro, com passagem comprada pela avó materna, sua cúmplice na fuga, alimentando a loucura da jovem que iria encontrar um primo também imigrante em terras tropicais.

O moço bonito ainda ia crescer mais centímetros e mais entusiasmos pela vida afora. Só não podia imaginar que o destino lhe traçara artimanhas que o fizeram embarcar como clandestino num navio que partia do porto de Vigo, num desses dias cinzentos, sem bagagem e sem níquel, vivendo uma aventura que seu coração palpitava como o grande salto para a liberdade e para o reencontro com a amada irmã. Obidio viajou horas no porão, entre as caixas imensas, marejando seu olhos de medo e arrependimento pelo abandono que impusera aos seus pais, mas com o consolo interior de que ficaria rico para visitá-los e mantê-los com vida mais digna, enviando o dinheiro que iria ganhar na América. Essa era a palavra mais ouvida no porto. Um navio que partia repleto de emigrantes para a América. E o Brasil, no seu entendimento, era a América, onde estava a doce Carmen, a irmã a quem se agarrara aos soluços, anos antes, pedindo que não o deixasse. Tinha na memória as frases da querida irmã, que lhe prometera mandar buscá-lo, mas que ao escrever-lhe, contara sobre a vida difícil também no Brasil, e seu casamento, a vinda dos primeiros filhos, a luta.Meu pai Ulysses foi o primeiro, nascido em 1922. Ela mandava sempre algum dinheiro para ele e seus pais. Enviara também um manto bordado para a Virgem de los Remédios, padroeira da sua terra, como um sinal de fé. Isso. Obidio tinha fé. Chegaria aos braços de Carmen logo, logo.

Os dias trancorreram vagarosamente e os medos começaram a cutucar-lhe a alma. Foi descoberto no meio do Oceano Atlantico, nada mais podia ser feito, e lhe avisaram que tão logo chegassem a Nova York, o soltaria às feras e ao mundo. O quase menino não entendeu nada. Então a América de que falavam não era a mesma da sua irmã? Pois tudo bem. De lá, devia ser perto, ele não conhecia geografia direito, iria ter com a sua família no Rio de Janeiro.

O que se passou depois, ele me contou em 1967. Foi quando o conheci. Eu, então com 17 anos, e ele sessentão. Sentados em volta da mesa da cozinha da Vó Carmen, eu, ela e tio Obidio, passávamos madrugadas inteiras esmiuçando a história de um casal de irmãos separados nos idos de 1910 que voltaram a se ver nos anos 60. Novela intrincada. No meio, muitas crises, cartas que iam e vinham entre Nova York e Rio de Janeiro. Nas primeiras, ele contava o quanto era aterrador ter chegado aos Estados Unidos e não entender a língua. Depois, sua luta para estudar inglês, sobreviver como ajudante de restaurantes, garçom e cozinheiro. O mundo girando. Juntava dólares para pegar um navio e ir para o Brasil. Ela , por sua vez, juntava filhos, a prole crescia. Ansiava receber o irmão.

Em 1929, uma última carta dele contava sua tragédia. A depressão econômica , tinha perdido tudo que juntara por uma década. Perdera inclusive a casa onde morava, estava sem rumo e via americanos jogando-se das janelas, num suicídio provocado pelo desespero financeiro. O marido de Carmen, meu avô Antonio, mandou que ela escrevesse convidando-o a vir de qualquer jeito. Havia lugar para ele na casa do casal junto dos filhos meninos e na cidade do Rio de Janeiro, onde se daria um jeito de empregá-lo em qualquer lugar. Fome, ela escreveu na carta, ele nao ia passar.

Mas a carta voltou sem resposta. Endereço não encontrado, foi devolvida. Ela e o marido que viviam no bairro da Urca, compraram uma casinha no subúrbio carioca, mudaram-se com os 4 filhos, viriam mais 4, e o canal foi interrompido. Carmen e Obidio não se falaram mais, nem se escreveram, nem se sabiam vivos ou mortos.

O mundo deu voltas. Ele casou com uma italiana e teve a filha Dolores Manuela. Esta cresceu, casou, tentou encontrar a tia por diversas vezes escrevendo para consulado espanhol no Rio. Mas Carmen nem comunicara mais seu novo endereço ao órgão oficial americano. Perderam-se.

Em 1967, tive a idéia de escrever para a cidadezinha deles. Verin, aldeia Razzela, Orense, na Galícia. Convenci minha avó, que sempre me contava sobre o sonho de reencontrar o irmão, que deveríamos enviar a carta para o posto de correios. Quem sabe, eu pressentia, ele teria passado por lá e deixado sua direção nos Estados Unidos?

A intuição foi acertada. Ele tinha mesmo ido visitar sua terra natal, depois de tantos anos. E perguntara a todos se alguém tinha notícias da Carmen Torneros, a que emigrara para o Brasil, sua única e saudosa irmã. Sem respostas, voltou para Nova York, onde morara e trabalhara toda a vida, agora estabelecido como americano naturalizado, já avô de tres netos e já no terceiro casamento.

Antes de retornar à América, agora como passageiro de moderna aeronave, Obidio teve a idéia de deixar um cartão de visita, no pequeno posto de correio da aldeiazinha. Dias depois, os funcionários do tal posto viram chegar do Brasil uma carta. No sobre escrito estava assim ( eu escrevera)"Para mi querido hermano Obidio Torneros, que vive en America, por favor, esta carta es para él, soy Carmen Torneros, vivo en Brasil".

Assim aconteceu. Em outro capítulo vou contar sobre o reencontro, os vários reencontros deles e nossas vidas que se cruzaram.

Agora, o que me cabe, é sonhar em ir a Nova York, onde ele tantas vezes me convidou e nunca fui. Tinha medo de me tornar imigrante como ele e minha avó. Está no meu sangue, não quis arriscar. Se eu tivesse ido aos 18, acho que não teria voltado ao Brasil, com certeza.

E fiquei por aqui. Com meus pais e meu único irmão. Agora, que meu filho já tem 30 anos, perdi meu pai e minha mãe está velhinha e doente, recebo um convite de um novo amor, para ir à cidade que abrigou meu tio-avô, que lhe fez um homem forte, um vencedor, muito embora ele tenha me contado o quanto chorou sozinho, naquele lugar. Sei que vou me emocionar muito quando lá chegar. Ele não estará me esperando no aeroporto. Mas sua neta irá me encontrar. Seus netos e bisnetos vivem lá. São parte do meu sangue. Não verei todos, vivem em cidades distantes. Dolores, a filha vive no Oregon e a filha Jeanne Marie, em New York.

Viajarei escondida nos porões da minha identidade espanhola. Viajarei amedrontada nos tropeços da minha história ancestral. Viajarei sonhadora nos braços do amor familiar e vou construir nova história. Vou ver a minha América. A que não me dará sustento e trabalho, mas onde vou agradecer as chances que deu ao meu tio assim como sou grata ao Brasil pela família linda que minha avó pôde construir aqui.

Uma América onde dois espanholitos que se amavam tanto estiveram plantando mais amor e sei que sou fruto da sua garra de viver, da sua sede de sobrevivência, sou aquela a quem ambos pediram que um dia escrevesse um livro sobre sua história.

Vou iniciar o tal livro. Terei muitas coisas para narrar. Também sou personagem, sou parte do enredo.
Aparecida Torneros

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