terça-feira, 18 de agosto de 2009

Clara Nunes e Sivuca



Música brasileira da melhor qualidade. A interpretação da saudosa Clara Nunes e a sanfona deliciosa do Sivuca. Nordeste com tempero mineiro, eta "forró da muléstia"!


Com jeito de Adélia, rompendo o ano na casa da serra...

Seu moço, não conte com a lua essa noite.Que o mundo tá de ventre virado, soltando fumaça pelas ventas do Demo! Valei-me , cruzes, peste danada essa virada de ano. Espantar os males, pros confins da terra?

Ora, criatura, nem se avexe, porque tem mais é caminho por esse mundo de Deus cheio de bomba pra estourar na cara da gente. Sabe a guerra do tal do Iraque, acho que é de Araque. Isso mesmo, só pra inglês ver e americano enriquecer.

O professor dos meus meninos falou que a causa é a gasolina, pois é isso mesmo , o tal do ouro negro, petróleo que tem muito praquelas bandas de lá. Me escusa, tô tomando seu tempo, que veio aqui descansar. Perdido na serra? Veio pra ficar? Uns dias, disse D. Bilé.

Licença, que o fogo tá queimando a panela, despos a gente proseia, tá? Nada disso, farinha do saco furando junta mosca que vem do chiqueiro do seu Juca do Brejo, ô homem mais topeira, Cininha nunca viu. Ele parece que nasceu com raiva do mundo e ainda por cima fica juntando essas sujeiradas que chamam a mosquitada pra cá dos portões da Fazenda Neuza.

Desculpe qui eu dei de uns tempos pra cá de praguejar. To falando sozinha. Nem liiga pra isso. É coisa de véia, de bruxa da aldeia. Mas não tenha medo nenhum. Só rezo pro bem, aprendi com a vózinha, e salvo muita criança de mau olhado, sabia?

Meu branco, voltei pra dizer que , entonces, vou saindo de banda, se acomode, tem água fresquinha na moringa de barro, e tem frutas na cesta. Café quentinho tem na garrafa, essa pretinha. Nem pense duas vezes, se precisar é só chamar, grite por mim, chama assim : Mariaaaaaa , que eu corro e lhe atendo. Comida, o sr. se incomoda de sentar na mesa com os pobres? ainda bem que balançou a cabeça, assim, a gente se vê,na janta, as 7 em ponto, tá bom?

Outra coisa, se tiver sabonete pode usar no chuveiro, que nós aqui gasta mesmo é o sabão de côco, e só se perfuma pras missas do domingo. Como hoje termina o tal do ano véio, e diz que o novo já vem, seja benvindo, homem que veio de longe, sozinho assim, sem família, pedindo pousada pra passar que nem fugitivo, perdido por esses lados da serra, que nem lobo coxo, faminto de afeto, parece, nem sei, digo tanta besteira.

Fique, senhor, fidalgo seu rosto, cara de poderoso, honroso senhor, repouse da lida, do cansaço da alma, esqueça o passado. Depois de comer, o Juca pega da viola, nem se acanhe , sente com a gente e se puder, cante, isso, moço, cante e se encante, que a vida é paixão, de ano pra ano, tem gente bonita , desculpe falar, mas se quiser, pode se achegar pra distrair os miolos. Nem me pregunte a que horas deve levantar amanhã. Sua hora, moço, é tão sua. Nem me atrevo a dizer. Pode dormir tudo o que precisar. O sono dos justos. O sono atrazado. Pode sonhar com o amor, que na noite avançada, a alma da gente voa, sabia? a minha já foi até o Japão, eu acordei, mas lembrei.

Aqui, fidalgo senhor, fique o tempo que precisar pra renascer sua luz. Licença de novo, mas, não faça isso, por favor, não me diga que tá chorando? assim eu me derreto de dó.

Sou sua criada, viu? Posso ser sua bruxa, se achar melhor, ajudo a desfazer esse feitiço brabo que seus olhos me mostram. Prefere a fada, entendo, Luzia da Casa Azul , posso chamar pro senhor. Ela faz um trabalho santo que desmancha qualquer quebranto, viu. Até mandiga de amor, agora que acalmou, se banhe com água pura, moço, chore só mais um pouquinho e se ajeite pro ano novo. Que o véio, as almas penadas tão já levando, pros quintos dos infernos.

Amanhã, quando o sol nascer por essas campinas, cabritinhos pulando as pedras, crianças a cavalo correndo cotia, seu moço, verá, com os olhos que a terra vai comer um dia, que tudo passou, até os pesadelos, e só sobrou o resto do sonho, a melhor parte, aquele pedaço em que o mocinho vai pela estrada e vai ser feliz.

Que nem feliz , todo mundo diz, é o Ano Novo, esse que chega daqui a pouco, aqui na casa da serra.
Aparecida Torneros

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