segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Celtas e Iberos





Sobre a morriña galega...crônica de Francisco José Viegas

SETEMBRO 15, 2007

A ordem natural das coisas

O cronista, com saudades do Outono e do princípio do Inverno, foi ao Rogério do Redondo, no Porto, para confirmar que a vida tem sentido. E tem.

Tenho saudades da chuva. Desculpai-me, leito ras e leitores, mas tenho saudades da chuva; não tanto da chuva, mas da chuva do Porto, daquele molinhar irmão da 'morriña' galega, coisa de gente do Norte, como se vê pela pronúncia. Chego a esta altura do ano e olho melancolicamente para a roupa de Inverno, para a gabardina escondida atrás da porta de um armário, para o céu nublado - cheio de esperança. Prometem-me um Verão tardio e extemporâneo e eu penso em queixar-me ao senhor Provedor: não é justo que as autoridades prolonguem o Verão. Um pouco de frio, agora. Um nadinha de (ah, como eu gosto desta linguagem!) neblinas matinais a norte do cabo Carvoeiro, com acentuado arrefecimento nocturno e ondas de dois a três metros na costa atlântica, sem falar na forma­ção de geada e de chuva que pode ser neve nas terras altas do interior.

Mas não pensem que sou um fanático do Inverno; por mim, o mundo poderia ter o clima e as tempe raturas da Costa Rica ou, digamos para efeitos urbanos, do Rio de Janeiro (naquele pontinho minúsculo da Gávea, exactamente). Faço-me entender, julgo eu. Simplesmente, nesta colina diante do Atlântico, distante do Mar dos Sargaços e da Guanabara, então prefiro que venham as temperaturas e chuvas da época. Para quê? Pois, simplesmente, para regressar aos restaurantes que não mentem e que se recusam, por razões eviden­temente sérias, conquanto discutíveis, a "mudar a lista por causa da estação do ano". O Rogério do Redondo, bem no centro do Porto (fundado por Rogério Vieira de Sá e Manuel do Redondo).

Trata-se de uma casa que engana raramente: isto é isto, sável de escabeche é sável de escabeche, tripas à moda do Porto são mesmo tripas à moda do Porto e, para que conste, filetes de pescada com arroz de feijão malandro não é a mesma coisa que filetes de peixe-galo com açorda de mílharas.

Chegado aqui, o leitor (e a leitora, a quem digna mente pisco um olho, o direito) já sabe ao que me refiro: à honradez da mesa, ao brilho pecaminoso do hóspede que toma assento à sua mesa e não espera alterações na ordem das coisas, porque – enfim – sentado à mesa e rodeado de aromas fortes e substantivos, a ordem das coisas está bem assim mesmo. Explico como, para que não julguem que me fico pela teoria: cabrito assado à sexta-feira e tripas à quinta; cabidela (galo de cabidela, precavei-vos, sentimentais!) e costela mendinha em havendo; Inverno com sopas de nabos e de penca, ou com uma sublime sopa de favas de outros tem pos; rabanadas no seu tempo, triunfais e douradas, dulcíssimas, escorrendo. Os filetes de peixe-galo, com açorda de mílharas (tremei, leitores do Sul!, trata-se de ovas), são sempre bons, suculentos até, mesmo tratando-se de peixe; as postas de pescada frita muito suaves, tingidas de limão, brancas com a alvura da espuma do mar de Vigo, mas envolvidas num polme tranquilizador como uma gabardina que se usa contra a 'morriña'; o bacalhau à facho (uma tentação do barroco portuense de primeira água, com forno em dois tempos, cebolada e arroz) é para lhe seguirmos o rasto; o rancho (outra forma de sucumbir ao barroco dos artesãos, com o seu grão amaciado, o macarronete, a couvinha, a bata ta rareando, as carnes a borbulhar num caldo ameno e alaranjado) para matar saudades e pecar contra os elementos naturais; a mãozinha de vitela com feijão vermelho, uma das primícias da cozinha familiar e doméstica da cidade; e, depois, comida de que temos saudade de vez em quando - petingas fritinhas com arroz de tomate, pataniscas com arroz de feijão (o leitor já sabe como eu sou arrozeiro), e a monumental morcela com grelos (atenção, que no Rogério do Redondo seguem o bom preceito e servem-na como deve ser: cozida, natural, para que se perceba como é feita - e não é uma morcela envergonhada, sem carnes, não).

Continuando a piscar o olho à leitora (agora o esquerdo, por causa do astigmatismo, que me exige o colírio nestas circunstâncias), menciono os Matateus, uns folhadinhos de abóbora (gila, ou chila) e, se for senhora séria, pois acrescento o pudim do abade de Priscos, coitado, tão comido.

Querem ver que está a chover na rua? É por isso que o Rogério do Redondo é um dos meus restaurantes de Outono. Chove mesmo.





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