Maracanã

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quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

Zé Luís, o militante, uma história a ser recontada...











Zé Luís , o militante, uma história a ser recontada...

Ele gritava, em 67 e 68, pelos corredores do colégio: - Cidaaaaaaaaaaaa.... espalhafatoso e sempre sorridente. Zé Luís, um moreno de cabelos de índio, tão lisos, que insistentemente caíam sobre seus olhos. Aluno do científico e presidente do diretório estudantil da entidade. Eu, aluna do curso clássico noturno, no Pedro II, também muito risonha e cheia de amigas e amigos.

Nosso namoro foi quase infantil, e quase adulto. Durou menos de um ano, entre encontros e desencontros. Mas me rendeu muitas notas máximas na cadeira de prática de ensino, na escola Normal, onde eu cursva, simultaneamente, durante os dia, o Instituto de Educação, para formar-me professora primária. Na verdade, rendeu muito mais, uma história inacabada a ser recontada. Ele queria ser arquiteto e era exímio desenhista. Num tempo em que não existiam nem a computação gráfica e nem as xeroxs coloridas, eu pedia para o Zé desenhar figuras históricas para meus trabalhos de normalista. Lembro de um Santos Dumont que ele fez, junto com a imagem do avião 14 Bis. Foi um sucesso, no álbum seriado que me serviu de apoio para uma das aulas que dei às crianças da escola onde estagiava como professoranda. Tirei 10, evidentemente, não só pelos desenhos lindos, mas também porque a figura carismática do pai da aviação sempre fez parte da minha galeria pessoal de líderes brasileiros, arrojados compatriotas e inteligentes criaturas a honrar meu país.

Eu e duas amigas éramos inseparáveis. Regina e Rosária, que me acompanham até hoje e certamente devem se lembrar nas noites em que as deixei para acompanhar o Zé nas tais reuniões dos militantes. Aconteciam numa universidade. Eu ia e não entendia quase nada. Ansiava pelo término das reuniões porque queria trocar uns beijinhos com o namorado. Mas a discussão acalorada corria solta, na praça da República, com alunos secundaristas a planejar mobilização para as constantes greves daquele período.

Nas noites em que ele me gritava, eu respondia: - Espera, Zé, já to indooooooooooooooo.... olhando-o do alto das grades dos corredores do segundo andar, no prédio centenário na Av. Mal. Floriano. Lá embaixo, o menino risonho, engravatado, com a pastinha debaixo do braço, me aguardando para irmos namorar. Mas só depois da tal reunião político-estudantil. Eu aceitava e vivia a dupla aventura. Iniciava-me nas artes da política e do amor, pisando em ovos, digamos, não compreendia ambos , aliás, tenho dúvidas com os dois temas, que persistem até os dias de agora.
Um casalzinho de jovens caminhava abraçado , uniformizado, pela av Presidente Vargas em direção ao tal encontro, onde eles se chamavam de "camaradas". Via sempre por lá o líder estudantil Vladimir Palmeira, com sua verve envolvente.

Um dia, a boba aqui perguntou porque faziam isso. O Zé, com ares de sabichão , me disse que eu precisava ler mais a respeito da revolução russa, dos Bolcheviques e Mencheviques, que só vim a estudar mesmo nos anos 70, na universidade.

Assembléia terminada, votadas as questões de ordem, combinadas as datas e horas das passeatas e protestos, eu e ele seguíamos para ver o mar, na Praça XV, olhando Niterói lá longe, antes da construção da ponte. No trajeto , ele sempre me lembrava que no dia de cada passeata, eu devia me esconder na casa de velas, na hora do pegapracapá, quando a polícia chegasse, já que estaria muito ocupado e não poderia me proteger. Eu me sentia importante, participante corajosa, como namorada do manda chuva dos estudantes do Pedro II.

Sentávamos num banco qualquer. Sonhávamos e imaginávamos o futuro. Sempre ríamos muito. Ele era um ser brincalhão. Um namoradinho da mocidade que nunca esqueci, melhor que isso, um amigo que me ajudava a estudar, na biblioteca, muitas vezes, quando eu precisava me concentrar para as provas. Depois de algum tempo, levava-me ao ponto do ônibus. Eu ia para um lado e ele para outro. Não podia chegar tarde em casa, no subúrbio, a hora fatal era sair da cidade às 22 horas.

Quando eu já estava terminando a escola normal e já tinha decidido fazer o vestibular para jornalismo, encontrava-me atarefada com estudos e preparativos para a formatura, ele me veio com uma convesa estranha. Estava sério pela primeira vez. Presenteou-me com um livro sobre o comunismo chinês: "a oitava lua". Disse que ia ter que sumir. Que se engajaria numa luta mais forte contra a ditadura. Só depois eu soube que era o MR8. Naquele dezembro de 68, as coisas recrudesceram. Foi assinado o AI5, eu participei da colação de grau, sem a presença dele, mas homenageio-o no meu discurso de oradora. Apenas citei que o dedicava a alguém que tinha concorrido para que eu concluísse o curso ajudando-me muito e que agora não podia estar ali. Não sabia do seu paradeiro. Mas confiava que ele seguia sua caminhada por ideais tão fortes na garotada da época.

O ano seguinte, 69, já na universidade, foi, para mim, de muitas descobertas sociais e políticas. Segui imaginando que o Zé devia estar na luta e que um dia me procuraria. Já não éramos namorados, mas as memórias dos nossos momentos compartilhados nunca saíram da minha cabeça.

A cada vez que sabia de alguma notícia de militantes mortos ou abatidos, presos ou perseguidos, exilados ou mais tarde anistiado, eu observava as listas de nomes na esperança de uma linha sobre o Zé Magro, como era conhecido. Na vida clandestina, eu supunha, ele devia ter assumido codinomes a que nunca tive acesso.

O som da sua risada, seus trejeitos espalhafatosos, seu desenho esmerado, a lápis cera, seu carinho daqueles velhos tempos, ainda permanecem em mim.

A vida correu. Passaram-se 40 anos. Estamos em dezembro de 2008. Nunca mais soube dele.

Vou encerrar este texto transcrevendo um email que recebi de um ex militante (omitirei seu nome), em 2005.

Vale como outra homenagem à memória do Zé, e a sua história , ou melhor a nossa pequena-grande história, e meninos quase adultos, naqueles meses de 67 e 68.

Eis o texto recebido:
" Maria Aparecida, o Vladimir sempre avisa que, nos tempos atuais, é preciso TER MUITO CUIDADO quando se fala de ex-companheiros, especialmente se for um “MAMA DON´T CRY” ("amigos presos e sumidos pra nunca mais voltar"). Vc. é jornalista e sabe muito mais que eu sobre o assunto. O Vladimir aconselhava que quando nos deparamos com tal fato, no caso o Zé Magro, é bom que narremos fatos e/ou costumes que NUNCA FORAM relatados nos vários livros de memórias ou histórias daquele período. Vou tentar seguir os conselhos do Vladimir. Eu conheci e fiquei amigo de um aluno do Colégio Pedro II, em 1968, chamado JOSE LUIS DA MOTTA RODRIGUES, que sempre comparecia as reuniões do Centro Acadêmico Candido de Oliveira, na Faculdade de Direito do Rio de Janeiro, na Praça da Republica ( Campo de Santana ), liderada por Vladimir Palmeira. Zé Magro, sempre com seu uniforme do “CAFÉ GLOBO”, como ele gostava de definir o Pedro II por causa de um horrível emblema pregado no lado esquerdo da camisa branca. Zé Magro tinha um “tique nervoso” de sempre alisar a gravata azul ( de péssimo gosto ) berrante que compunha o uniforme. Zé Magro falava sempre do seu amigo e colega de classe, um jogador (ponta-esquerda) de futebol do Fluminense, chamado Gilson Nunes, embora o Zé Magro se confessasse torcedor do Flamengo. Zé Magro contava que namorava uma normalista do Instituto de Educação, da Praça da Bandeira. Todavia era muito comum que as meninas de lá namorassem meninos do Pedro II e do Colégio Militar. As meninas do Pedro II também gostavam de namorar os meninos do Colégio Militar, os quais, por razões apenas sabidas por eles, não tinham coragem de levar, uniformizados, suas namoradas na porta do colégio Pedro II. Zé Magro morria de rir quando nos contava isso.... Zé Magro tinha uma grande amizade com o Prof. Jairo Bezerra, de quem falava muito bem, mormente quando contava vantagem de “ ter professores que foram autores dos livros que todo mundo usava no ginasial e científico do Brasil ". A ultima vez que conversei com Zé Magro, foi em 69, quando nos encontramos na sinuca da Praça Tiradentes, quando ele me contou que iria para São Paulo se juntar ao MR-8. Certa ocasião, em 1976, em Pigalle, Paris, vi uma pessoa muito semelhante ao meu amigo Zé Magro, mesmo descontando o desgaste do tempo. Soltei do táxi e saí correndo atrás da pessoa, mas não consegui encontra-lo. Li praticamente TODOS os livros de memórias “DOS QUE VOLTARAM”, mas não consegui identificar ninguém com traços do ZÉ MAGRO. Até hoje, tratando-se do Zé Magro, continuo “bêbado trajando luto”. Para que meu coração não dê problemas ( como o seu que disparou ) vou tomar meu Atenol 100. L.P.S.M.

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