quinta-feira, 27 de março de 2014

Convivendo com os outros, de Paulo Coelho

Convivendo com os outros
Continue no deserto

- Por que o senhor vive no deserto?

- Porque não consigo ser o que desejo. Quando começo a ser eu mesmo, as pessoas me tratam com uma reverência falsa. Quando sou verdadeiro a respeito de minha fé, então elas que começam a duvidar. Todos acreditam que são mais santos que eu, mas fingem-se de pecadores com medo de insultar minha solidão. Procuram mostrar o tempo todo que me consideram um santo; e assim se transformam em emissários do demônio, me tentando com o Orgulho.

- Seu problema não é tentar ser quem é, mas aceitar os outros como são. E agir assim, é melhor continuar no deserto - disse o cavaleiro, afastando-se.



Perdoando os inimigos

O abade perguntou ao aluno preferido como ia seu progresso espiritual. O aluno respondeu que estava conseguindo dedicar a Deus todos os momentos de seu dia.

- Então, falta apenas perdoar os seus inimigos.

O rapaz ficou chocado:

- Mas não tenho raiva de meus inimigos!

- Você acha que Deus tem raiva de você?

- Claro que não!

- E mesmo assim você pede Seu perdão, não é verdade? Faça o mesmo com seus inimigos, mesmo que não sinta ódio por eles. Quem perdoa, está lavando e perfumando o próprio coração.



Porque deixar o homem para o sexto dia

Um grupo de sábios reuniu-se para discutir a obra de Deus; queriam saber por que havia deixado para criar o homem no sexto dia.

- Ele pensava em organizar bem o Universo, de modo que pudéssemos ter todas as maravilhas a nossa disposição - disse um.

- Ele quis primeiro fazer alguns testes com animais, de modo a não cometer os mesmos erros conosco - argumentou outro.

Um sábio judeu apareceu para o encontro. O tema da discussão lhe foi comunicado: “em sua opinião, por que Deus deixou para criar o homem no último dia?”

- Muito simples - comentou o sábio. - Para que, quando fossemos tocados pelo orgulho, pudéssemos refletir: até mesmo um simples mosquito teve prioridade no trabalho Divino.



O reino deste mundo

Um velho ermitão foi certa vez convidado para ir até a corte do rei mais poderoso daquela época.

- Eu invejo um homem santo, que se contenta com tão pouco – comentou o soberano.

- Eu invejo Vossa Majestade, que se contenta com menos que eu. Eu tenho a música das esferas celestes, tenho os rios e as montanhas do mundo inteiro, tenho a lua e o sol, porque tenho Deus na minha alma. Vossa Majestade, porém, tem apenas este reino.



Qual o melhor caminho

Quando perguntaram ao abade Antonio se o caminho do sacrifício levava ao céu, este respondeu:

-Existem dois caminhos de sacrifício. O primeiro é o do homem que mortifica a carne, faz penitência, porque acha que estamos condenados. Este homem sente-se culpado, e julga-se indigno de viver feliz. Neste caso, ele não chega a lugar nenhum, porque Deus não habita a culpa.

"O segundo é o do homem que, embora sabendo que o mundo não é perfeito como todos queríamos que fosse, reza, faz penitência, oferece seu tempo e seu trabalho para melhorar o ambiente ao seu redor. Neste caso, a Presença Divina o ajuda o tempo todo, e ele consegue resultados no Céu".



O trabalho na lavoura

O rapaz cruzou o deserto, e chegou finalmente ao mosteiro de Sceta. Ali, pediu para assistir uma das palestras do abade - e recebeu permissão.

Naquela tarde, o abade discorreu sobre a importância do trabalho na lavoura.

No final da palestra, o rapaz comentou com um dos monges:

- Fiquei muito impressionado. Achei que ia encontrar um sermão iluminado sobre as virtudes e os pecados, e o abade só falava de tomates, irrigação, e coisas assim. Do lugar aonde venho, todos acreditam que Deus é misericórdia: basta rezar.

O monge sorriu, e respondeu:

- Aqui, nós acreditamos que Deus já fez a parte Dele; agora cabe a nós continuar o processo.

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