terça-feira, 18 de outubro de 2011

Minha linda normalista, dos anos dourados, no Rio de Janeiro

 
Minha linda normalista, dos anos 60, no Rio de Janeiro
Maria Aparecida Torneros da Silva

 
 
 
Texto
O convite dizia:
 
Festa no Instituto de Educação: "Será realizada uma festa no Instituto de Educação do Rio de Janeiro no dia 18 de novembro às 20h, no Pátio do Chafariz, ao som da Orquestra Tabajara, na rua Mariz e Barros, Tijuca. Convidamos todos os professores, funcionários, ex-alunos, ex-professores e ex-funcionários para esta grande noite de confraternização, onde estarão juntos aqueles que têm o embleminha do Instituto em seus corações."
 
Lembra quem puder, conta quem souber, revive quem se emocionar, mas, nós, as ex-alunas do Instituto de Educação do Rio de Janeiro, aquela casa criada por Getulio Vargas, nos anos 30, com o objetivo de formar as novas professoras da capital federal, tem mesmo muita história para se contar.
 
Primeiro, foi o sonho de toda jovem educada segundo os princípios rígidos que norteavam a ditadura do gaúcho, e se alicersavam nos parâmetros de uma igreja católica ainda dominante, naquela época. Diretrizes morais que, durante muitas décadas, serviram de exemplo e ponto de apoio para que se divinizasse o papel das professoras, e das estudantes "normalistas", as que só se casavam após a formatura. Imortalizada na canção do Nelson Gonçalves, "Minha linda normalista, não pode casar ainda, só depois se formar", cada jovem que cruzasse nos anos 30, 40 ou 50 as ruas da cidade maravilhosa, vestida com o austero uniforme da blusa branca com gola fechada no pescoço, gravatinha azul indicando a sigla IE, saia plissada, cinto marcando a cinturinha fina, meias brancas e sapatos abotinados pretos rigorosamente engraxados, era como a reafirmação do compromisso com o Brasil do futuro.
 
Ficaram famosas as festas onde as meninas do Instituto bailaram e namoraram os rapazes do Colégio Militar. Desses bailes surgiram muitos reais casamentos e novas famílias tradicionais, imbuídas da fantasia dos dezembros dos "anos dourados", com o romantismo que o cinema americano se encarregava de fomentar em cada coração de um tempo em que o país iniciava sua industrialização e a capital se transferida para Brasília.
 
Na segunda metade dos anos 60, deu-se a mudança radical nos costumes e nas idéias da juventude brasileira. Uma revolução militar, seguida de uma ditadura castradora, atingiu a vida de todo jovem brasileiro, obrigando-o a se posicionar. Foram muitas as posições que se escolheu: podia-se observar simplesmente ou lutar. Quem quisesse colocar-se à margem, abster-se, seguir seu caminho individual, teria o respaldo do regime fechado, e isso era visível nas escolas oficiais, mas era próprio do tempo negro por que passava nossa história. Pode-se chamar de anos "clandestinos", com a inquietude modificando os padrões de comportamento das meninas do Instituto.
 
A esta altura, a escola rompera uma tradição e já aceitava rapazes em suas salas de aula, que eram gatos pingados naquele mar de meninas de azul e branco, saltitantes, alegres, competitivas, jogadoras de vôlei, ou nadadoras das ondas renovadoras, e o grupo se fortalecia com idéias de liberdade, aulas de canto coral. O teatro, com apresentação de peças como "Morte e vida severina", de João Cabral de Mello Neto, que assisti, em 66, no auditório, pela primeira vez, e foi como levar um soco no estômago, ao refletir ali, sobre as condições da vida do retirante nordestino, em contraponto com a miséria suburbana que os nossos professores nos preparavam para enfrentar, logo depois de formadas, onde iríamos levar ensino, hábitos, como missão de educadoras conscientes.
 
Em 67, a música do Chico Buarque, "A Banda", serviu de fundo para um protesto feminino inesquecível. Havia o controle diário, na entrada das aulas, para que nós não usássemos "porta-seios" ( era como chamavam), que não fossem brancos ou cor da pele. Se as inspetoras vissem que alguma trajava a sombra de uma roupa tão íntima, de cor preta, ou mesmo colorida, pois as mais ousadas já queriam provocar e vestiam até vermelho, éramos impedidas de entrar. Nossas saias, cumprimento permitido na altura dos joelhos, passavam por um sistema de enrola-estica, hoje digno de sonoras gargalhadas. Na portaria, todas enrolávamos a saia, ao ganhar as ruas, para mostrarmos as pernocas que deviam ficar guardadas pelo uniforme dentro dos pavilhões austeros do Instituto.
 
Mas, a tal "revolução" dos sutiens, quero lembrar, foi num dia em que combinamos, na turma da manhã, para levarmos as peças de biquinis de praia,as mais floridas, espalhafatosas, coloridas, dentro das malas de estudo, evidentemente. Na hora do recreio, fomos vesti-las nos banheiros, e em determinado momento, saímos em bloco animado, cantando a Banda, com as blusas abertas, peitos enfeitados à mostra, a felicidade de desafiar nossas inspetoras senhoris, que enlouqueciam correndo de um lado para outro, nos empurrando de volta para que nos recompuséssemos, segundo a moral e os bons costumes. Ali, surgiam os anos transparentes. Não era possível mais que o Instituto e as outras escolas normais do estado seguissem com hábitos fora da realidade lá fora que gritava a liberdade para uma juventude que via o país atravessar tanta perseguição política.
 
Em 68, fui a oradora oficial da formatura de 900 formandas, no Maracanãzinho. Tive o desprazer de ser abordada por agentes do SNI antes da minha apresentação que queriam saber do conteúdo do meu discurso, proferido dias depois da assinatura do AI 5. Não mostrei. Disse-lhes que correria o risco pois não queria estragar a surpresa preparada. E foi linda, emocionante.
 
Eu e um grupo de amigas havíamos organizado e ensaiado muito um jogral. Nossas vozes,em uníssono, treinadas, falaram de educação, respeito à criança brasileira, responsabilidade na condução das novas gerações, amor ao trabalho, intensidade na dedicação ao futuro.
 
Hoje, sabemos que o futuro chegou e agora, na festa do Instituto, vamos rememorar e comemorar cada capítulo dessa história de meninas e meninos que sonharam com um Brasil melhor e aqui estão, vivos, para testemunhar avanços e retrocessos, mas sobretudo, para renovar seu compromisso com a Educação, como Instituto de um patrimônio nacional inalienável.
 
Aparecida Torneros, formada em 68 no IE, jornalista
(este texto é dedicado à Lucia Ritto, colega de turma no Instituto e na UFF, jornalista-escritora, falecida em 2003)

Nenhum comentário:

Postar um comentário