domingo, 2 de janeiro de 2011

Sou filha do Sol


Saturday, November 03, 2007



Sou filha do Sol...

por Maria Aparecida Torneros da Silva
 Publicada em 23/05/2005


De onde venho, trago comigo o calor.

Venho do Sol.


Como tudo que é vivo ou já foi, nesse planeta circulante, em elipses, ora me aproximo ora me afasto da estrela-mãe, que me queima e abastece de energias, enquanto as trocas de protons e eletrons seguem seu curso, ordenadamente.


Ora se fazem verde ou azul, num espectro vicioso, transmutando-se em fósforo, em cinzas, em química adensada, em formulações desconhecidas ainda, materializam-se a cada milênio, perpetuam por tempo determinado como se vida fosse eternidade, até que a estrela morra...


Venho do Sol. Sou filha da luz que me ofusca a limitação do cérebro programado para crer ainda em sonhos, nesse curto viver, nesse breve sopro onde encontro seres e a eles peço abraço.


Venho do Sol. Sou irmã das dores e carências dos meus pares, aqueles a quem concedo a dignidade de se tornarem importantes nos momentos mais estranhos, quando persigo a lucidez. Faço isso, mesmo sabendo que ela é apenas uma face da loucura para onde me dirijo com os olhos cansados de ver o que não quero.


Venho de um Sol metido a besta, um mundo de fogo a consumir os dias da gente inocente a plantar qualquer semente que germine ilusão e história. Sou parte integrante do seu raio de alcance obsessivo, combustão desintegradora de partículas dançantes, tolices brincalhonas de um universo indecifrável.


Filha do Sol, sou como a mulher da tribo milenar e ancestral. Não compreendo nada. Como a que me precedeu no tempo, apego-me aos fantasmas supesticiosos engendrados por lideranças religiosas, na tentativa válida de me religar ao Supremo. E nada é mais inquietante que duvidar do dito cujo criador dos céus, justo quando preciso dele para apaziguar as angústias e o isolamento.


Desenho na pedra qualquer coisa... Escrevo na tela qualquer frase. Mando para alguém qualquer beijo. Abraço na manhã de domingo qualquer corpo. Cumpro na biologia dos sentidos qualquer caminho para o êxtase hormonal, porque é preciso lançar mão desse calor que me é facultado ainda.


No dia em que beijei o avô morto, descobri que a morte é gelada. Escondi-me num canto do jardim suburbano, naquele verão ingrato, a chorar sob o jasmineiro, porque percebi que a vida era nada sem a quentura de lábios pulsantes a me acariciar a pele.


Decidi, a partir daquela experiência traumatizante, que ofertaria todo o fogo que ardesse dentro de mim, pelo tempo que dispusesse para estar na Terra do Sol. Sou filha dele. Sou parte dessa possibilidade finita.


Compreendi a busca humana pela explosão fantástica da bomba que reproduz a origem de tudo. Em milhões de fragmentos, tudo começa e tudo termina.


Nada há de mais produndamente válido do que aceitar o acaso da origem do mundo. E, se por acaso, te faço algum pedido para me guardar em sonho morno, é porque tenho a impressão de que, se atingir o meu ponto de fusão, não serei mais aquela que a ti presenteou com vida.


Serei, em ebulição, elevada à condição de vapor, a criatura que voa para muito longe. Sou o que sou, no calor do momento roubado aos que me dizem palavras repetidas de um discurso antigo. Sou ainda, aquela que amadurece as carnes antes de as deixar apodrecer pelo amargo do tempo.

Sou de uma ressurreição impiedosa e constante, por me reabastecer no pretenso sentido de querer bem a qualquer ser vivo. Tenho as flores de tantos jardins, tenho as gentis gargalhadas de crianças brincalhonas, tenho os folguedos dos filhotes de animais domesticados, tenho os passos iseguros da velhice exemplar pelas ruas das cidades.


Sou a filha da calorosa manhã nos trópicos a observar os elefantes e a saldar os gofinhos. Compreendo o sorriso engessado das tartarugas cautelosas, me valho da sua garra para voltar e desovar meus medos nas praias onde algum macho me beijou primeiro. Ali, terei nascido e renascido por milhões de anos-luz.


Sendo quem sou, divido o galho dessa árvore atingida pelo vento das marés inundadas de cardumes recheados de criaturinhas aparentemente felizes, e nado, em direçâo a tanto nada.


Ato-me ao ponto em que o equilíbrio permite alguma lucidez para oferecer a alguém especial um canto de paz. Mas, antes que o mal cresça, adoro o Sol mesmo sabendo que se apagará daqui a alguns milhões de séculos.


E te amo, como aprendi, sem esperar nada além do que um segundo dizendo coisas pueris nos ouvidos atentos de um companheiro eventual, trazido pelo acaso, onde também por acaso, foi possível me desprender e deixar que fosse embora.


Cada vez que reencontro algum carinho no dia a dia que me é dado viver, já preparo o adeus sem mágoas aquietando tanto fogo de viver, aceitando, enfim, que tudo tem um fim, para que seja possível a ecatombe luminosa de todo recomeço, que é calor absurdamente eterno.


Para onde vou, levo comigo a saudade do teu calor em mim, tu que vieste sob o signo da luz do Sol, me iluminou a estrada, me aqueceu a alma e me inundou de fogo.

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