sábado, 1 de janeiro de 2011

Reflexões Sobre a Paz Interior

Reflexões Sobre a Paz Interior



Tam Huyen Van – Dezembro, 2008


Não creio que exista uma meta mais valiosa do que alcançar a paz. Não falo daquela paz convencional, feita de artifícios político-sociais e sonhos ideológicos de grupos ou culturas, mas da paz íntima, feita de momentos plenos e realmente conscientes, quando a mente é capaz de transformar e curar, de uma vez por todas, nossas almas inconstantes. É estranho que para falar claramente sobre a paz profunda seja necessário denunciar os artifícios da paz externa, desejada tão ardentemente por tantos idealistas e revolucionários, e até mesmo usada por ditadores e homens poderosos em todos os tempos como justificativa para suas escolhas trágicas. Mas isso é necessário. Pois o mais terrível dos erros humanos sempre se manifesta no fato de que, devido à ignorância e falta de discernimento, permanecemos incapazes de reconhecer quando nossos valores mais fundamentais tornam-se distorcidos pelas expectativas parciais de nossas mentes mergulhadas em auto-engano.


Assim, sem perceber, todos nós desejamos criar a paz em nossas vidas e comunidades. Mas para isso, imaginamos sempre e apenas meios externos através dos quais essa idéia de paz será imposta (e não realmente auto-manifestada) aos outros por meio de leis ou revoluções, movimentos ou campanhas, sem observar que a mobilização crucial para que a harmonia seja revelada em nossas vidas depende daquelas ações íntimas, ações de consciência e observação interna, pelas quais os indivíduos atingem algo muito mais válido para o bem mútuo do que doutrinas sociais ou movimentos políticos: a sabedoria e a clareza de coração e mente. De fato, penso que as mais essenciais metas humanas – felicidade, saúde, realização – não são possíveis sem que o contexto da paz seja manifestado, sustentado e resolvido em nós mesmos (e por nós mesmos) através do correto entendimento do quê realmente significa estar em equilíbrio e harmonia.

Mas o reconhecimento de tudo isso não é fácil. A diversidade gigantesca das expectativas humanas é por demais avassaladora para que possamos imaginar, ingenuamente, que possa realmente existir um denominador comum em argumentação e análise sobre o mais adequado exercício de consciência pacífica, em uma incrível manifestação de equilíbrio interior. A babel humana das opiniões conflituosas, místicas fantasiosas e racionalidades pragmáticas é por demais ruidosa para que as vozes da prática consciente sejam ouvidas claramente, e assim continuamos cegos, tateando uma saída, sempre próximos do abismo.


A maioria esmagadora dos seres humanos considera impossível acreditar que tanto do mundo concreto possa depender de algo tão aparentemente vago como o exercício constante de reflexão e transformação psico-emocional. Essa descrença não se dá porque deixamos de reconhecer as vantagens de uma profilaxia mental, mas porque não percebemos que a proposta é muito mais ampla, vai além de técnicas terapêuticas, teorias filosóficas ou crenças religiosas, e atinge nossas convicções mais arraigadas. E uma vez que, para a mente condicionada, toda solução pragmática somente surge com atitudes derivadas de algum tipo de técnica específica, torna-se claro que ficaria difícil saber em qual método, de tantos já apresentados e construídos pelas mentes humanas, confiar. De modo geral as pessoas comuns desistem de refletir e simplesmente preferem ter fé cega, uma confiança conveniente, em alguma coisa baseada em concordância coletiva, seja tal coisa uma crença espiritual, uma lógica racional ou uma doutrina política – afinal, o homem é uma criatura de impulsos. Mas será que o valor está no método em si ou no modo como podemos discernir sua pertinência?


Eu sempre costumo questionar: quantas são as formas através das quais uma mente pode se deixar levar por suas próprias inadequações, seus próprios vícios – quantas são as maneiras pelas quais a mente humana cria o seu próprio inferno? Não serão poucas, realmente. É desnecessário ser um expert em comportamento e psicologia para perceber o grau de inconstância em nossas experiências imediatas, e mesmo aquelas pessoas que poderiam afirma-se privilegiadas com uma vida materialmente sólida e sem grandes exigências de sobrevivência, também elas terão de reconhecer que vivenciam frequentemente momentos de desequilíbrio e frustração – afinal, a condição humana faz parte do amplo encadeamento de circunstâncias e necessidades impermanentes da existência.


O equilíbrio, sob as premissas do exercício de consciência e discernimento que a visão contemplativa propõe, vai muito além de um simples método onde as tensões corpo-mente são aplacadas. A cultura atual do narcisismo exacerbado representada pelos exercícios físicos intensos, métodos alimentares rebuscados e fórmulas artificiais de auto-ajuda não resolve nem de longe a real problemática dos seres humanos: sua profunda carência de auto-regulação, sua dificuldade em perceber as coisas com atenção plena e sensibilidade – sua incapacidade de acordar para as realidades relativas que dominam toda a sua idéia de mundo. Devido a nossa resistência em aceitar a natureza diversa e inconstante das várias realidades existenciais, continuamos aferrados a uma descrição de mundo egoísta e conflituosa. A humanidade ainda sofre com a ignorância milenar de si mesma.


Não, o equilíbrio e a harmonia não são conseqüência de exercícios e dietas. A paz não será alcançada através de posturas, receitas, regras, livros, imposições sociais ou políticas. Ela tampouco será atingida com leis, decretos, diretrizes. Estas ações apenas se manifestam como fruto das necessidades comuns ou excentricidades de uma cultura mundial em permanente estado de superficialidades, convencionalismos ou jogos de poder.


A paz surge quando a mente desperta de seu longo sonho delusório. Ela surge quando você (um indivíduo único e fundamental, ainda que relativo) for capaz de finalmente acordar se suas visões distorcidas sobre o mundo à sua volta. Mas para isso você precisará aprender a reconhecer a si mesmo, abraçar e curar a parcela de "eu" que existe em você na qual todas as suas ignorâncias perceptivas buscam se abrigar do vento tempestuoso da Impermanência. Ali estão elas, ilusoriamente imaginando-se protegidas da Roda da Vida e tolamente atarefadas em construir uma idéia de mundo artificial, baseada em vícios de interpretação e escolhas passionais. Nossas ignorâncias sustentam a avidez com que buscamos sucessos, e alimentam o fogo dos ódios e conflitos que justificam nossas atitudes beligerantes, diferenciadoras, fanáticas e orgulhosas. Graças a esta cultura do esquecimento de si, a natureza humana ainda permanece longe do despertar interior. E ao permanecer distante do despertar, continuamos sem paz.


Sei que o conceito de paz é desprezado por muitos como um aspecto secundário, talvez uma simples poesia inalcançável. Como é comum para as mentes desfocadas, conceitos associados ao que nossa cultura costuma definir como "virtudes" tendem a ser assaz desmerecidos como frágeis demais para realmente determinar o curso da história humana. A humanidade admira (às vezes secretamente) imperadores e senhores da guerra, generais e ditadores, como homens que pelo menos demonstraram coragem e determinação. Nossa cultura, ainda profundamente competitiva e orgulhosa, ainda se entusiasma com aquelas pessoas que, por força de sua intensa falta de consciência plena, souberam manipular povos e exércitos, criando civilizações à custa de mortes e destruição.


O Homem ainda não foi capaz de superar seu apego à violência como fundamento para a criação de sociedades e como justificativa para a sua história. Ainda hoje, o caminho da humanidade têm sido pavimentado por guerras e conflitos, tanto os concretizados nos campos e cidades como aqueles outros conflitos, ainda mais devastadores (se tal for possível), que se desenrolam em nossos corações e mentes. De fato, são justamente os conflitos de percepção e compreensão nas mentes apegadas e ávidas que irão justificar e inventar as guerras, os assassínios, o terror. E a própria admiração distorcida que temos pelos senhores das guerras.


E a mais amarga ironia é que todas essas atrocidades são feitas por homens que imaginam, mesmo que sob bases criminosamente egoístas e vazias, criar uma "paz" conveniente, criada e artificializada pela violência, que favoreça suas próprias ambições e desejos. Não há paz nas políticas, nos idealismos, nas mobilizações sectárias ou tendenciosas criadas por pessoas, grupos ou culturas; no máximo, posso discernir o anseio por uma paz ilusória jamais atingida, mas que é frequentemente referenciada nas palavras e atos de pessoas cujas mentes ainda não encontraram a medida certa de atenção e discernimento. As mentes que pretendem impor uma paz falsa para os outros são mentes que ainda não encontraram a paz em si mesmas.


Tudo ainda se resume na falta de sabedoria. Se você realmente deseja alcançar a paz, saiba que ela precisa ser praticada em seu interior mais profundo. Ela se manifestará quando você souber parar, quando for capaz de criar em si mesmo uma lacuna sensível entre os seus vícios de hábitos ignorantes e o seu grande potencial de sabedoria e visão correta. Esta lacuna é a nossa cura. Pois, ao criar uma distância adequada entre a ignorância e o Despertar, você poderá finalmente transformar seus condicionamentos, ódios e ilusões em liberdade e consciência, e assim será capaz de enxergar aquele Despertar como possível e viável, além de crenças ou desejos – além dos conflitos. Portanto, a paz interior nasce do ventre da liberdade promovida pela superação de nossos equívocos de escolha e falsas interpretações do mundo, que sustentam em nós tantas ações vazias de sentido mas aparentemente tão prazerosas em usufrutos egoístas.


Não é possível experimentar a paz sem antes lidar corajosamente com os aspectos insalubres de nossa natureza. Como praticante de um caminho contemplativo como o buddhismo, eu jamais me permiti fugir do difícil exercício de atenção às minhas limitações de percepção e consciência. È fundamental que saibamos enxergar, e nos renovar, com as maravilhas da existência, com o amor, a paciência e o bem-estar; mas para chegar a isso conscientemente é preciso que estejamos atentos ao que realmente nós somos. Precisamos abraçar com firmeza o desafio de reconhecer os nossos vícios, compreende-los, transformá-los e curá-los. Mas o truque aqui é saber evitar, também neste momento, o hábito agressivo e competitivo de imaginar tudo isso como uma outra guerra. Não podemos sucumbir ao erro lamentável de, na pretensão de atingir harmonia e equilíbrio, criar em nós mesmos mais embates e enfrentamentos.



De fato, não há conflitos no Caminho. A trilha da paz interior é feita, passo a passo, sem raiva ou malícia. Ela é feita de paciência e bom senso, e de um grande interesse em desvelar o véu de pré-conceitos e hábitos irrefletidos que sustentam nossas ilusões. Acorde! Dê o passo, busque sua paz aprendendo a ver o mundo com olhos de compreensão e coerência – reflita, pondere, mas saiba reconhecer quando as suas próprias ilusões estão determinando aquilo que você acredita, e faz. As ações são tudo o que nos define. E será através da harmonia nas ações de consciência e contemplação praticadas por nós que a paz interior irá nascer.

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