domingo, 12 de dezembro de 2010

Noel na minha vida na Vila Isabel...

Piso nas notas musicais desenhadas no chao da Vila Isabel. Em pedrinhas portuguesas, ali estao alguns pedacinhos das cancoes que Noel Rosa imortalizou, em  nosso bairro.

Quando vim morar no Andarai, com meus pais e irmao, tinha 20 anos. Logo,  mudamos para a Vila e aqui passamos a morar em casas proximas, a partir dos casamentos e vindas de filhos e netos, costumamos circular pelas ruas onde vivemos, Teodoro da Silva, Maxwell, Artistas, Dona Maria, Souza Franco, e no Boulevard 28 de setembro.

Para quem vive por aqui, ja se tornou  habito, dar uma paradinha no Petisco e ouvir historias de Noel.

Passei minha infancia e adolescencia no suburbio da Leopoldina, precisamente em Ramos, era vizinha do mestre Pixinguinha, morava na rua do bloco Cacique, via e ouvia serenatas, pagodes de quintal, chorinho nos portoes das casas, homens nas esquinas tocando violao.

Havia sempre gente cantando num Rio de Janeiro dos anos 50 e 60; cresci metida na ""grandeza da gente humilde e fui muitas vezes a igrejinha da  Penha, nas suas festas de outubro, subindo ate o alto, de onde avistava uma cidade encantadora, sob o prisma inverso do glamour da zona sul. Por ali, comecei a ouvir o que contavam sobre Noel, passei tambem a escutar sua musica, aprendi a sentir sua alma carioca , especialmente a vida curta e boemia que levo

A marca do quanto Noel ziguezagueou mesclando-se entre classes sociais, misturando-se sem preconceitos ao seu povo, ele, um estudante de medicina, que se fez amigo dos malandros, que leu  e traduziu o espirito gozador que caracterizou as duas decadas da sua passagem na terra.

Seu mundo virou legado e patrimonio para nossa cidade, e alcancou o patamar de brasilidade formada na consciencia cultural de uma capital como o Rio de Janeiro, infestada de fabricas de tecidos, botoes, predios publicos, faculdades formadoras de medicos, engenheiros, e vidas paralelas, os botecos, os lugares do  baixo meretricio, as noitadas, os amores oficiais e as paixoes clandestinas, proibidas ou seus desdobramentos. Festas de sao Joao, festas da igreja da Penha, bailes nas gafieiras do centro, banhos de mar em Copacabana, escapadas da juventude que ele representou. Havia o risco da tuberculose, e ainda pairava nos ares daquele seu tempo, o romantismo quase suicida de viver intensamente as emocoes, ainda que o tempo fosse curto, mas de profunda busca da felicidade.    

Noel estava constantemente nas historias suburbanas. Todos os antigos da epoca sabiam algo sobre ele, cada musica sua tinha um enredo tao carioca e tao entranhado no orgulho dos trabalhadores que pegavam o trem de manhazinha.

Nas minhas aulas de escola normal, analisavamos suas letras. Lembro-me que a professora Telenia Terezinha levou semanas trabalhando conosco os versos de algumas das suas criacoes. Impressionavam-me pelo conteudo e forma, por exemplo: "O orvalho vem caindo, vai molhar o meu chapeu, e tambem vao sumindo as estrelas la do ceu, tenho passado tao mal, a minha cama e uma folha de jornal, meu cortinado e o vasto ceu de anil e o meu despertador e o guarda-civil, que o salario ainda nao viu" 

Como nao se apaixonar por Noel, sua genialidade e seu irreverente viver? Anos mais tarde, trabalhei com um medico que fora seu companheiro de classe na universidade, dr. Paulo Ferreira, que ja velhinho, me contava mazelas entre risadas, sobre o rodizio que os colegas faziam para cobrir suas faltas, ajuda-lo nos trabalhos, esconde-lo no fundo das salas, para que ele dormisse nas manhas em que tentava frequentar a faculdade de medicina, vindo direto da boemia, mas encantando os amigos com seus relatos e poesias musicais. 

Talento, arte, encanto, um conjunto privilegiado para um compositor e interprete do seu proprio destino, capaz de nos sensibilizar hoje tanto que ao completar 100 anos de nascimento, e depois de ter vivido somente 26, na verdade, permanece vivo, esta entre nos, e a mim, especialmente, me faz muito bem cantarolar Palpite Infeliz... " quem e voce que nao sabe o que diz, meu Deus do ceu que palpite infeliz, a Vila nao quer abafar ninguem, so quer mostrar que faz samba tambem..." 

As rodas de samba continuam pela Vila e pela cidade toda, temos uma heranca que nos mobiliza especialmente na vida e obra do grande Noel, o sensivel estudante, o apaixonado homem, o gozador e brincalhao letrista que perguntava com que roupa iria ao samba, o sofrido autor do ultimo desejo, o simpatico motorista apaixonado pela operaria da fabrica de tecidos, cujo apito feria seus ouvidos, nas manhas em que ele voltava da farra e observava a jovem que nao lhe dava bola.

Noel fez do seu dia a dia um enredo de cancoes especiais, imortalizou costumes atraves das suas poesias, brincou com seus momentos de dor e ultrapassou os sofrimentos humanos nos oferecendo alegria, emocao, a sensacao deliciosa de que realmente ser da Vila, com licenca, meus senhores, nos confere o estatus de sermos parceiros do Noel, mesmo um seculo depois...

Cida Torneros        

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