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sexta-feira, 25 de junho de 2010
O mistério Gardel
O mistério Gardel
Por Denise Mota
O cantor e compositor Carlos Gardel
Reprodução
Buenos Aires e outra dezena de cidades no mundo homenageiam o maior cantor do tango, morto há 75 anos
Sobre Carlos Gardel, a única certeza é que morreu há 75 anos, em 24 de junho de 1935. Que o acidente de avião que pôs fim à sua ascensão aos céus dourados de Hollywood teve lugar na colombiana Medellín. E que é o grande responsável por fazer do tango o gênero do Rio da Prata por excelência, reconhecido em territórios tão distantes quanto Japão ou Alemanha, países que reverenciarão o cantor a partir deste mês.
Gardel, que não se sabe se nasceu em 1887 ou 1890, é a inspiração de Campeonatos de Tango, organizados em muitos lugares no mundo inteiro.
A vida do cantor de tango está assentada sobre o terreno movediço das possibilidades, de uma sucessão de dúvidas e suposições contraditórias, que tornam a sua história tão enigmática quanto parte dos tangos que difundiu pelo mundo.
Gardel teria nascido em Toulouse (França) ou em Tacuarembó (390 km ao norte de Montevidéu)? Trocou o nome por motivos escusos ou substituiu o próprio nome por o de um irmão mais velho, morto em criança e que se chamava Charles Gardès? Foi filho de mãe solteira ou nasceu no seio de uma família liderada por um militar do interior uruguaio? Ou teria sido fruto de uma relação fugidia de sua mãe, Berta, com um primo, seminarista, que depois foi enviado à Ásia e à África (numa espécie de degredo promovido pelos familiares)?
Seria ainda filho de um francês, quem sabe engenheiro, quem sabe operário, homem que em outras narrativas é apresentado como comerciante, ou viajante, ou empresário da França?
Gardel seria homossexual ou amante da noite, das mulheres, da bebida e dos excessos? Ou, ao contrário, um modelo de superação e contenção pessoal, ao passar de 120 para 75 kilos, depois de uma rotina incansável de exercícios e sessões de sauna?
Na Colômbia, morreu pura e simplesmente em decorrência de um imprevisível acidente de avião ou foi vítima de um tiroteio anterior, ocorrido dentro da aeronave?
Em meio a tantas conjecturas, sobrevivem algumas poucas certezas a respeito do mito: era fanático por corrida de cavalos (e possuía um, chamado Lunático), deu uma casa à namorada oficial, Isabel del Valle (a dúvida reside em outras versões, que acrescentam que foi obrigado a casar-se com ela pelos irmãos da moça, embora não haja documentos que certifiquem a cerimônia).
Aos 25 anos, numa briga de rua, foi baleado no pulmão esquerdo, projétil que o acompanhou durante o resto da vida. Atuou em "Flor de Durazno", filme mudo argentino de 1917 que marcou sua estréia no cinema. Cantou com Josephine Baker. Compôs 50 canções e interpretou cerca de 1.000 temas, num total de 3.000 gravações, currículo que não o poupou de ter de lutar contra a fama de "bon vivant". Em entrevista publicada em Buenos Aires em 1929, reclamava que as pessoas consideravam que ele não trabalhava: "Acreditam que ganho dinheiro sem fazer nada. E ganho, sem dúvida, ganho muito dinheiro, mas também trabalho muitas horas por dia".
Provocou tumultos e, diz-se, suicídios com sua morte. Na passagem do corpo por Montevidéu, registra o jornal argentino "La Nación", à época, que "tochas e candelabros iluminavam a capela, enquanto de todos os lados se iam depositando oferendas florais, que perfumavam o ambiente e atenuavam com seus matizes a gravidade que fluía do tapete negro. A caixa mortuária foi desembarcada coberta pelo poncho de vicunha de Gardel, que apresentava em um de seus extremos, bordadas em ouro, as letras de seu nome e sobrenome. A homenagem popular superou todas as previsões da polícia marítima, e como os férreos portões se abriam aos poucos, acabou por ser impossível impedir os atropelos e violências, que se repetiram ao longo do dia".
Sobre suas origens, o próprio artista -que tinha o hábito de assumir identidades fictícias em documentos- costumava comentar, com ar divertido, ter nascido "aos dois anos e meio" na capital argentina. Nada a estranhar, portanto, que a organização das celebrações deste ano revolvesse susceptibilidades nacionais -em especial a contenda surda que persiste entre Argentina e Uruguai há pelo menos sete décadas a respeito do berço artístico, pessoal e emocional do cantor de tango mais famoso do mundo, o "moreno do Abasto", como ficou conhecido entre seus pares- por ter passado a infância e a adolescência nesse bairro portenho.
Ao anunciar os preparativos para as homenagens ao cantor, em abril deste ano, o secretário municipal de Cultura de Buenos Aires, Gustavo López, provocou desagrado em seu homólogo montevideano, Gonzalo Carámbula, após comentário de que o artista havia nascido na França. À afirmativa, qualificada por Carámbula de "inaceitável", seguiram-se conversas entre as duas autoridades.
O debate teve sua carga de tensão intensificada por um prévio "mal-estar" provocado no Uruguai, segundo afirmou o secretário de Montevidéu, depois da notícia de que Buenos Aires havia convidado Toulouse e Medellín -por considerá-las "cidades-irmãs" na biografia de Gardel- para participar dos eventos ao redor de seus 70 anos de morte. Nenhuma localidade uruguaia teria sido considerada naquele momento.
Tanto barulho gerou resultados: López passou a assegurar que Buenos Aires não reconhecia oficialmente Toulouse como lugar de nascimento de Gardel e incluiu não só a capital do Uruguai, mas também Tacuarembó, no roteiro do concurso de tango organizado pelo governo portenho.
Além disso, em 24 de junho, Montevidéu, ao lado de Bogotá, também está com as "cidades-irmãs" na promoção de uma série de espetáculos. "Montevidéu já é uma cidade-irmã, onde o tango tem muita importância", apaziguou López em entrevista ao jornal "Clarín", onde também não deixou de afirmar que "homenagear Gardel é homenagear Buenos Aires. Gardel e Buenos Aires são uma mesma coisa".
Gardel não deixou descendentes, legou muitas dúvidas. É o centro de uma disputa internacional e continua a alimentar teses de gerações de pesquisadores, além de acirradas discussões, entre a academia e a boemia. Está enterrado em Buenos Aires.
Denise Mota
É jornalista. Vive em Montevidéu.
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