terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

A visita de Piaf ( conto)



A Visita de Piaf




Um céu nublado inundou a cidade de Paris, naquela primavera fria, de 1950.



Marie nem podia crer que era ela mesma, a própria Piaf, a famosa compositora e intérprete, que estava na sua frente, tão frágil como um pequeno pardal. E seus olhinhos brilhavam refletindo os sentimentos de uma mulher apaixonada e atormentada.


Piaf chegou devagar, na sombra de um sorriso, trouxe para a mulher que a recebeu na porta da loja de conveniência, o tom da sua melancolia, a cor pálida da sua incompreendida vida, seus anseios de amor e a pressa de chegar a um lugar que desconhecia. Parecia sem rumo a pequenina cantora. Disfarçada com óculos escuros, e imenso sobretudo, tinha os cabelos envoltos num lenço de seda em matizes de branco e negro. Figura lendária, Marie logo percebeu estar diante de uma deusa da paixão e legítima representante da perplexidade da vida.


Falaram-se monossilabicamente. Piaf buscava cigarros e uma garrafa de bebida quente. Estava sozinha, sem rodeios, sem maquiagem, saltara de um táxi. Eram quase dez horas da noite, Marie preparava-se para cerrar o lugar, depois de um longo e cansativo dia.


Olhou com certa reserva aquela criatura que parecia menor ainda, muito mais frágil do que se podia pensar, além de trazer as mãos tão finas com dedos longos, unhas crescidas e tratadas, Piaf lhe oferecia um semblante com ares de pedinte de companhia.


Marie convidou-a a sentar e as duas puseram-se com os olhos cruzados, ao redor de uma pequena mesa, enquanto eram providenciadas duas taças, um cinzeiro, como se fosse um ritual. A artista acendeu um cigarro, olhou a jovem com atenção, recebeu de volta uma mirada indagadora, porém doce.

As palavras custaram a sair de suas bocas. Havia, por outro lado, um sentido de estranheza, de parte a parte. Quem seria aquela moça aparentemente mansa, trabalhadora de uma lojinha, que se dispunha a ficar só , até aquelas horas, em rua semi deserta, à espera de um último freguês?


Nos pensamentos confusos de Marie, como podia aparecer naquela loja tão inexpressiva, uma cantora de fama internacional, assim solitária e tão carente que era posível ler nos seus gestos a insegurança dos aflitos e a inteligência indecifrável dos grandes gênios.


- Só preciso de umas tragadas e de uns dois copos. Depois me vou e não a incomodo mais. Você deve ter uma família esperando, em um lar tipicamente francês, não é?


- Não é, ( Marie prontamente respondeu), moro sozinha, vim do interior, tenho 29 anos, não tenho um amor, conheço todas as suas canções, e hoje, talvez seja o momento mais importante da minha vida.


Piaf sorriu então um sorriso aberto. Tinha encontrado a pessoa certa na hora certa e o lugar lhe pareceu perfeito. Precisava registrar aquele instante. Sua vida era uma sucessão de emoções, altos e baixos, buscas e perdas.

Perderia por certo o contato com Marie , qual era mesmo seu nome? perguntou...

Mas, como suas lembranças eram muito fortes, desde a infância passada no prostíbulo, Piaf se habituara a ler os rostos das mulheres mal amadas e sonhadoras, e a traduzir em canções seus intensos , nostálgicos e dissimulados afazeres.



Logo, ao deixar para trás a loja, ia mesmo recordar Marie, símbolicamente, levaria dentro de si, o arremedo de aconchego que a jovem lhe oferecera, talvez pudesse guardar mais, para compor alguma canção de amor, algum dia, em homenagem à vendedora humilde e amiga. Piaf não conseguiu pagar a conta. Marie impediu-a, sentiu-se à vontade para presentear a artista com a bebida e os cigarros, sabia que esta lhe dera mais, em contrapartida, lhe ofertara o prazer de receber aquela incrível e inesperada visita.


Acompanhou a cantora até a calçada para chamarem um táxi. Quando Piaf entrou no carro, Marie abaixou-se , pegou suas mãos, beijou em reverência, agradeceu sua arte, sentiu que lágrimas fizeram brilhar os olhos da divina compositora.

Aí, num ato reflexo, Piaf, acariciou a cabeça da jovem, e falou baixinho: - Hoje, estou voltando à França e recomeçando tudo. Faz um ano perdi o grande amor da minha vida, num acidente de avião, e como você, Marie, serei sempre só, mas, nós, as mulheres sozinhas, sabemos que tudo não passa de uma perspectiva... no fundo, estamos mais acompanhadas do que nunca, pelas nossas lembranças e por um infinito desejo de viver.


E pediu ao motorista que desse partida. Se foi, Marie manteve-se como estátua por minutos vendo o carro sumir na noite, ouvindo a voz de Piaf confessando-se solitária, sentindo ainda sua mão amiga afagando seus cabelos e sobretudo, descobrindo, definitivamente, que teria a companhia da estrela, junto de si, por toda a vida.


Em 1955, anos depois, Piaf apareceu triunfante, num show magnífico no L'Olympia de Paris. No final do espetáculo, recebeu uma embalagem com um presente no camarim, só foi abrir bem tarde, já em casa, depois da noite maravilhosa da sua volta ao sucesso. Na caixa, havia uma carteira de cigarros, uma garrafa de conhaque e um bilhete, "Para que jamais se sinta só, nas noites em que volta à França. Com a minha companhia, Marie."




Maria Aparecida Torneros- RJ
( autora dos livros "A muher necessária" e "O contra-ataque do amor")

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