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CRÔNICA/ MÚSICA
COISAS DE MENINAS REBELDES
Cida Torneros
O pequeno disco de vinil, compacto simples, era como o chamavam, rodava manso sobre a vitrolinha portátil num quarto de meninas, em Copacabana, devia ser 1969 ou 70, e a música melodiosa e triste era sussurrada pelas vozes de três jovenzinhas rebeldes, eu e minhas duas primas. A música que nos embalou, variava de gosto e estilo, mas nas horas de desilusão, minha prima Regina, que faleceu há pouco tempo, aos 53 anos, sapecava a voz do Antonio Marcos, cantando “eu hoje estou tão triste, eu precisava tanto conversar com Deus”.
Tínhamos entre 17 ou 19 anos, nos vestíamos para sair na noite, escondidas, é claro, esperando que meus padrinhos, pais delas, pegassem no sono. Queríamos ir a alguma “boite”, com vestidos de mini saia, sapatos salto agulha, bem perto, na Fernando Mendes,onde, nos deslumbrávamos como os artistas que iam dar canja, e nossa bebida de praxe era mesmo a cuba libre. O que queríamos mesmo era aprender a amar.
Tínhamos a meninice brejeira, a pele bronzeada pela frequencia habitual às areias de Copa, o encantamento pela novidade, a sensação da transgressão, e, ao mesmo tempo, o medo de alguma aventura mais arrojada, nada fazíamos a não ser trocar beijinhos com namoradinhos tão jovens quanto nós, e corríamos pra casa, onde entrávamos, com os sapatos na mão, rezando para que a Lady,cadelinha de estimação não desse nem um latido, denunciando nossa chegada no apê, onde ainda viraríamos o resto da madrugada, fofocando sobre pequenos delitos, ou fumando um cigarrinho comum, cujo cheiro íamos disfarçar com perfume em spray.
O disco ia chegando ao final, a tecnologia era mesmo manual, e uma das tres esticava o dedinho para que a agulha voltasse ao princípio da música, e lá íamos nós, envolvidas pelo questionamento sobre a tristeza que começávamos a descobrir ser tão comum nos amores desfeitos pela traição, quando pegávamos as mentiras mal contadas dos tais namoradinhos aprendizes de conviver as emoções da ternura e do prazer. Havia também o fato de que muitas vezes nos entusiasmávos por homens que não nos davam bola por acharem que éramos bobinhas demais e não tínhamos a malicia necessária para um “verdadeiro affair”.
A canção do jovem autor, entre muitas outras, era sucesso, e, ao mesmo tempo, era um libelo inocente para o futuro que teríamos que enfrentar. Ele mesmo, que foi prisioneiro do alcoolismo e morreu em consequencia disso, nos transmitiu, além do talento, uma amargura suficiente para que nos identificássemos com uma das mais cruéis rotinas dos relacionamentos, seus finais dolorosos, as decepções amorosas, os finais onde um dos parceiros teria mesmo que chorar. Então, nos diálogos das três, quantas ocasiões não nos perguntamos: Então o amor era isso? Traiçoes, desilusões e sofrimentos?
Acho que foi nessa época que aprendemos também a saber chorar pelos amores perdidos, pelos amores sonhados, pelos amores mal sucedidos, sem entretanto termos desistido de voltar a buscar qualque tipo de amor, pelo resto de nossas vidas.
Já se passaram quase 40 anos, e hoje, ao ouvir a tal interpretação do saudoso cantor, me vi, exatamente como aquela menina-moça ( como éramos chamadas), sentindo um frio na alma, um aperto no peito, a saudade da esperança daqueles dias de juventude, o cansaço de tantas tentativas de encontrar amor sincero, e aí, desabei num pranto sofrido, doído, inteiramente descontrolado, resgatando um momento que dentro de mim, se repete, como um presságio.
A vida rolou, e ainda rola, Regina deixou filhos adultos e sua irmã Lena hoje é viúva com filhos e netos, ainda trabalha e gosta de dançar. Pouco nos vemos, mas quando nos encontramos, é possivel relembrar as artimanhas quase infantis que ousamos viver, como por exemplo, fugir num fusca de algum amigo para tomar sol na Barra, que era um deserto e o fim do mundo, mas nos dava a dimensão de que esse mesmo mundo cresceria mais. Ainda iríamos ultrapassar fronteiras maiores e nos aventurarmos em caronas de avião indo buscar o amor em lugares e países distantes. Talvez o amor seja mesmo essa coisa impossível, na concepção da tal felicidade fantasiosa, e nem adianta fugirmos para praias desertas ou cidades apinhadas, porque onde houver um coração humano sedento de paixão, sempre haverá a possibilidade de amar alguém que nunca soube o que é o amor, como revela a letra da tal musiquinha.
Vou esticar o dedinho e desta vez, já não existe mais o vinilzinho pequeno, nem gira melancolicamente na noite da minha saudade, mas posso teclar no yutube, ouvir muitas vezes a voz dos meus 18 anos, e, aos 60, ainda vou chorar mais um pouquinho por que o tempo não apagou minha tristeza diante de amores desfeitos, de amores que não me deram diploma, por ser ainda uma aluna que não aprendeu direito como amar e ser aprovada com a medalha da felicidade.
Cida Torneros , jornalista e escritora, autora do livro “A Mulher Necessária”, mora no Rio de Janeiro.
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