domingo, 3 de janeiro de 2010

O espaço do amor é o lugar dos sonhos...

O espaço do amor é o lugar dos sonhos...
 
 
Ainda que as juntas insistissem em lembrar que a idade da razão deveria ter chegado ao coração cansado, o homem, sexagenário, com olhar maduro e aparentemente plácido, de gestos burilados no tempo, com passos em caminhada cuidadosamente estudada, arriscou pensar no amor, mais uma vez.
 
Não tinha como aquietar-se agora. Algo fazia pulsar-lhe o peito em estado absoluto de canseira progressiva, respiração entrecortada de suspiros que há muito julgava ter aposentado, já que as suas manhãs, nos últimos anos,  eram contemplativas da paisagem que se descortinava à sua frente, como um filme em que os outros eram protagonistas e ele passara a ser mero espectador.
 
Entretanto, tudo se transformara no dia em que ela o fisgou como um peixe desavisado. Aquela isca em forma de mulher atrevida, afinal, quem ela pensava que era na vida dele, ao invadir assim, como um vento de mudança de clima, no romper da tempestade, levantando poeira e galhos secos, fazendo dançar no espaço as folhas antes caídas no chão. Sim, ela não devia ter o direito de revolucionar desse modo ensurdecedor o silêncio do pássaro, que fora emudecendo através de um processo conquistado a duras penas em que o canto decrescera do sustenido ao sussurro, sufocando os agudos e calando os ais.
 
Nada o convencia hoje de que ela viera para despertá-lo da inércia com que o mundo o premiara. Para ele, tinham sobrado os programas da terceira idade, os pedidos de financiamento e descontos para médicos e remédios, os acenos de compromisso das festas de família, os telefonemas dos filhos, as risadas com os netos, talvez alguns almoços em restaurantes com fila na porta, em datas especiais.
 
Aprendera a ser somente o avô sossegado e o pai de plantão que acolheria as mazelas da prole aprendiz. Ele, o sábio, o experiente, o homem cuja história era exemplo aos olhos dos descendentes. Se tinha solidão depois da viuvez, ninguém questionava essa possibilidade, pois o viam caminhando religiosamente nas manhãs, com jeito feliz, junto dos amigos da praça, jogando cartas, tomando um chope gelado, nos entardeceres de verões que lhe emolduravam a calva branca, conferindo-lhe dignidade e magnitude.
 
Pois era ele mesmo, o aposentado do amor, que se sentia enfim, novamente, envolvido com as agruras de ver seu destino sacudido pela presença dela. Já seus banhos matinais tinham novos sabores enquanto ela ( em imaginação) adentrava seu corpo, o presenteava com prazer inenarrável, o acariciava em ritimo inconfidente.
 
Ele a acompanhava pelas calçadas, e os seus olhos a espreitavam, preparavam-se para a visão do paraíso, o suor era traiçoeiro quando ela demorava a surgir tão flutuante, saindo da portaria daquele prédio que mais parecia um castelo medieval, donde emergia a princesa mais graciosa, tão sorridente quanto frágil. Dava vontade de escoltá-la onde quer que ela fosse, pelo resto do dia, mas ele apenas ficava como anjo de guarda, discreto, embevecido, a admirar o passo da gazela aprumada, magra, esbelta, elegante, coberta por panos coloridos, de cabelos escorregados pelos ombros, mãos amestradas, dançantes do mundo, e a seguia, com os olhos, por aqueles instantes em que se via tão próximo dela.
 
Havia dias em que ela ia direto ao supermercado. Ele a acompanhava, com distância medida, e conseguia ouvir o som de algumas palavras quando ela conversava com os vendedores. Registrava as frases, iam direto para o lugar da memória que acionaria nas noites, quando estivesse na cama, e precisasse ouvir dela uma opinião.
 
- Princesa, por que está comigo esta noite?
- Nossa, mas eu adoro este mamão assim tão maduro!
 
As frases se encaixavam tão perfeitamente, vinham dela, mas ele se apropriava com esperteza, assim como também guardava para uso posterior alguns olhares mais expressivos, volteios de cabeça e corpo importantes, mãos compactadas que seguravam bolsas, para que se amoldassem aos entrelaçados desejos de senti-las em si, segurando as peles cujo viço voltava depois que ela o conhecera.
 
Uma vez, quando a perdeu de vista ( culpou os óculos cujo grau estava fraco e precisava renovar o exame no oftalmologista), voltou pra casa desconsolado.
 
Não se perdoou por este deslize absurdo. Perder sua princesa em plena rua de trânsito infestado de gaviões que andavam à cata de uma presa para caçar. Rezou ao Deus em que acreditava. Nem dormiu direito aquela madrugada, não conseguia se imaginar sem ela.
 
No dia seguinte, enfeitou-se, vestiu uma das  camisas novas que ganhara no dia dos pais, perfumou-se, calçou tênis ao estilo garotão, pôs na cabeça um boné que o neto lhe dera, com as iniciais do seu nome, aparou a barba, olhou bem no espelho para conferir se a bermuda estava bem vincada, apressou-se na direção da sua musa.
 
A hora estava próxima. Deu uma paradinha na carroça de refrigerante, pediu um mate enquanto aguardava a chegada dela.
 
A deusa surgiu soberana. Tinha o ar senhoril das dominadoras e caminhou em sua direção. Aproximou-se dele, dirigiu-lhe a palavra. Ele não conseguia entender nada. Estava estático, surpreso, sem jeito, fora do ar, um botão qualquer precisava ser acionado, sentia-se surdo, e a visão dela assim a dizer-lhe algo, o deixava quase cego. Excesso de luz, que sensação mais estranha, aí, ela tocou-lhe o ombro, um palavreado sem nexo embolou-se nos seus ouvidos.
 
Só lembra que acordou na ambulância, ela a lhe sorrir, acariciando-lhe a fronte, dizendo: - Vovô, não se preocupe, vou acompanhá-lo ao hospital. Está tudo bem, acho que é o calor, quando eu lhe perguntei se tinha visto se passara algum ônibus refrigerado para o centro, o senhor desmaiou. Chamei os bombeiros , vieram depressa. O médico está aqui ao lado. Tudo vai ficar bem. Fique calmo. Sou a Lenice, vejo sempre o senhor quando vou ao supermercado e vou confessar uma coisa, nunca o vejo comprar nada. Mas já imaginei que gosta mesmo é de passear sozinho, né? Agora, force um pouco a memória e me diga nome e telefone de alguém da sua família para que eu ligue avisando sobre você.
 
O aposentado fixou bem a imagem daquele rosto de anjo, assim tão perto de si e murmurou: - Minha mulher é uma princesa, mas o castelo onde moramos não tem telefone.   
 
Homem de sorte, ele caiu então, em sono profundo, para sonhar  com o amor da sua princesa, eternamente.
Cida Torneros

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