segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

A Toca de Assis ( texto para reflexão de fim de ano!)

A Toca de Assis
                         Marcia Bitencourt *


A casa amarela – ampla e recém-pintada – é limpa e parece nova. Na entrada, os internos tomam sol. Alheios à minha presença, nem respondem ao meu “bom dia”. Só um acena com a cabeça. Alguns estão em cadeira de rodas. Pela janela, vejo um homem numa cama cirúrgica, ligado ao soro. Mais conhecida como Toca de Assis, a unidade feminina Mooca do Instituto de Filhos e Filhas da Pobreza do Santíssimo Sacramento é uma espécie de refúgio para ex-mendigos enfermos, alguns deles em fase terminal.


São três da tarde. Vai começar a adoração da sexta-feira. O culto faz parte da rotina, mas só para as religiosas que moram ali e cuidam dos doentes: cinco consagradas (freiras), sendo que uma delas é a guardiã, responsável pela casa, e mais 11 postulantes (aspirantes à freira). A capela fica no andar de cima, uma mini-igreja com imagens de padres nas paredes: “O papa, o bispo da Mooca e o padre Roberto Lettieri, fundador do instituto”, diz a postulante Ana Paula, uma jovem de vinte e poucos anos com uniforme da Toca: cabelo curto, túnica marrom e sandálias havaianas. “A santa do altar é Nossa Senhora de Guadalupe.”

Recebo um apoio para os joelhos e as sandálias na porta indicam que devo tirar os sapatos. Entro numa saleta junto à capela, com uma das paredes de pedra, tudo bem conservado. No centro do altar há uma espécie de ampulheta dourada com uma hóstia no meio – o Santíssimo Sacramento, iluminado por seis castiçais vermelhos com velas acesas, três de cada lado. Na frente do altar, duas consagradas com a cabeça coberta estão ajoelhadas em genuflexórios (apoios para os joelhos) de madeira. No espaço central do cubículo, postulantes espremidas, uma ao lado da outra, estão ajoelhadas no chão adorando o Santíssimo. Irmã Maria José, a guardiã, me cumprimenta com um sorriso. Ela e mais três consagradas estão sentadas em cadeiras encostadas na parede oposta ao altar, contemplando o objeto dourado que – segundo elas – é o Cristo. O que diferencia as consagradas das postulantes são o véu de pano na cabeça e o hábito bege e marrom. As aspirantes usam “vestes”, uma espécie de túnica, sempre marrom.

De quinze em quinze minutos, a freira do genuflexório à direita, voltada para o altar, lê passagens da Via-Crúcis e conduz a oração. As demais, respondem em prece. Algumas postulantes pedem à guardiã para ir ao banheiro. Outras, quando se cansam, ficam em pé, depois, voltam a se ajoelhar, mas não deixam de mirar o Santíssimo. Uma delas, em minha frente, parece estar muito gripada, tosse regularmente. Observo que algumas às vezes dão uma cochilada, outras permanecem estáticas, durante as três horas, sem se levantar nenhuma vez. Para quem não está acostumada, a prática é maçante. Sentia tudo, sono, vontade de sair correndo, mas esperei; afinal, aceitara o convite e precisava saber o que levaria essas moças a passar tanto tempo orando. O que as faria abrir mão de suas vidas? Deixar amigos, família, faculdade, roupas, sapatos e até o direito de namorar, por amor a Deus?

A escolha sacerdotal


A guardiã, Irmã Maria José, 27 anos, coordena a casa. É a única que dirige a kombi, quando necessário. Começou como pobre de Deus, passou a vocacionada, foi postulante por dois anos e em seguida cumpriu um ano de noviciado e mais três de consagrada, quando assumiu os votos perpétuos de pobreza, castidade e obediência. Maria José não é o seu nome de batismo. Após dez anos de trabalho e penitência, ganhou a nova identidade com a aliança dourada na mão esquerda: hoje é esposa de Jesus.


Dedicamos nosso tempo ao trabalho de limpeza da casa, compras, cozinha, administração e cuidado com os internos e, também, à nossa vida de adoração e oração pelos sacerdotes do mundo inteiro, o que para nós é prioridade. Encontramos no Filho de Deus e no altar a nossa alegria de viver. Escolhemos servi-Lo pela adoração perpétua com os miseráveis e abandonados de rua.


A paraense Miriã tem cara de desconfiada, dificilmente sorri. Ela conta que recebeu o chamado aos 12 anos, quando já frequentava assiduamente a igreja – queria dar algo mais para Deus. Anos depois, passou a ir regularmente à Toca no acompanhamento vocacional. Aparentemente segura de sua decisão, diz que tem saudades da família, que é um ser humano, mas saber que os pais entendem o chamamento – nunca se opuseram – a deixa com mais liberdade para seguir o caminho que escolheu. Nunca teve namorado e não sente falta.


Desde a adolescência, sempre senti a vontade e o desejo de seguir a vida religiosa. Deixei tudo e sou bem ciente disso. Muitos que estão de fora não veem assim. É que a gente vive uma comunhão com Deus – a gente é carne, é humana, sente vontade, mas é uma escolha e o desejo tem de morrer, você precisa ser de Deus e isso é possível, amadurece, vamos crescendo na confiança em Deus, na pureza, no amor. Não é uma abnegação, é uma escolha que se faz por amor. É algo sobrenatural, quem está de fora não entende.




A postulante Patrícia, 23 anos, veio de Campinas. Esguia, de óculos, tem expressão apagada, tristonha. Conta que, ao escolher a vida religiosa, desapontou seus pais – queriam que ela fosse uma atleta profissional. Desde pequena, viajava bastante para competir e pretendia fazer uma faculdade ligada aos esportes. Passou a frequentar a igreja na adolescência. Um irmão religioso da Toca a convidou para visitar as casas. Ia escondida dos pais, fugia.


O chamado foi numa santa missa, quando eu comunguei Jesus. Ele me falou ao coração quando pedi um sinal. Ficava sete dias numa Toca, depois noutra e ajudava nas pastorais de rua com os irmãos, quanto mais eu conhecia, percebia que ali era o meu lugar. Largar a família e os sonhos é uma oferta de amor porque sei que é a vontade de Deus. Meus pais sentem saudades. Eles não me apoiaram, mas hoje respeitam. Vou de férias uma vez por ano, mas são 15 dias em que sinto falta da Toca, dos pobres da casa. Percebo que na casa de meus pais não sou totalmente feliz, quero viver a vida cotidiana da Toca, de oração, com os pobres”.

Carioca da Ilha do Governador, Cíntia, 19 anos, se destaca pela simpatia. É pequena, usa óculos e parece prestativa. Na hora da adoração, ouvi um interno, no andar de baixo, chamar por ela: “Cíntiaaaaaaaaaaaa”. Mesmo rezando, achou graça, sorriu. Ela começou cedo, aos 15 anos. Fez o colegial morando na Toca, em escolas próximas. Hoje isso não é mais permitido – é preciso terminar o Ensino Médio para iniciar o acompanhamento vocacional. Cíntia já esteve em casas de Brasília, Jaú e Embu das Artes.


Quando entrei pra Toca, meu pai disse: “Filha, sei que é difícil a vida nessa caminhada, mas se você sente o chamado, não quero que fique em casa, quero ver você perseverar nisso que Deus te deu porque vocação é dom de Deus”. Eles me apoiam, ligam pra mim e, uma vez por ano, vou pra casa. A minha mãe vem sempre no Dia das Mães. Meu chamado tem se confirmado a cada dia. Pretendo me consagrar daqui a três anos. O meu coração deseja muito, tenho mais nove anos para me decidir. Se eu quiser posso sair agora, na consagração não dá para sair, quando você faz os votos perpétuos não pode sair mais.


Anne, 22 anos, de Curitiba, ouviu falar da Toca pela primeira vez pela TV Canção Nova. Branca, forte, de estatura média – o cabelo castanho bem curto e a cara lavada a deixam com aparência meio andrógina, moleca. Para ela, o mais difícil foi largar a família. Deixar o namorado e a faculdade de Serviço Social, nem tanto. Quando fala das férias dali a uma semana fica animada. Na casa dos pais terá que usar as vestes direto e ir à missa todos os dias. O que faz de mais extraordinário nas férias é sair para comer pizza e dormir um pouco mais. A missão continua a mesma, “adorar ao Senhor e manter a castidade, tudo que se vive na Toca”.


Sempre gostei dos pobres. Admirava Madre Teresa. Com 10 anos, cuidava de dois vizinhos, criancinhas carentes mesmo; então eu levava eles pra casa, dava banho neles, mas não esperava virar freira. As pessoas pensam que freira é a pessoa mais frustrada do mundo, não pode casar, ter filhos, não pode sair, fazer o que quer. Não é isso, o que nos faz feliz é Jesus mesmo. Hoje penso mais na consagração. Os votos perpétuos e o novo nome são uma coisa divina. Por exemplo, gosto de Maria Clara, mas não é assim, tem todo um mistério de Santa Clara com Nosso Senhor.

“Irmão Sol, Irmã Lua”

O Instituto de Filhos e Filhas da Pobreza foi fundado em São Paulo, em 1994, pelo padre Roberto José Lettieri, que na época ainda era seminarista, e mais três jovens que desejavam viver o modelo franciscano. Nascia a Fraternidade de Aliança Toca de Assis. Dois anos depois, quando ordenado sacerdote, a obra – espelhada nos exemplos de pobreza, obediência, castidade e gratuidade do Poverello de Assis, Itália –, já contava com 80 jovens. Começaram a pastoral de rua e abriram a primeira casa de acolhimento para atender os sofredores de rua. Hoje são 50 casas no Brasil – 33 só no Estado de São Paulo e outras em países como Portugal, Colômbia e Equador.


Além das vestes marrons e das sandálias havaianas, outra marca dos toqueiros são os cabelos: curtos, à la homme – para as aspirantes – e o véu de pano na cabeça, para as consagradas. Os homens (nas casas masculinas) têm cabelos máquina zero até o noviciado e a tonsura – corte circular na parte mais alta da cabeça –, para os consagrados, tudo bem ao estilo franciscano, como no filme “Irmão Sol, Irmã Lua”, de Zeffirelli. “Uma corta o cabelo da outra. Aprendi com uma religiosa e peguei prática no cabelo dos irmãos, na pastoral de rua. A gente também faz as mãos e a barba dos irmãos da rua”, diz Cíntia.


À pergunta: E se um religioso gostar de uma religiosa? Cíntia responde: “Não posso dizer que não vai acontecer porque somos humanos. Soube de irmãos que saíram da Toca e estão juntos hoje. Mas eles saíram primeiro, não estamos na Toca com esse intuito”.

Os nomes que as consagradas recebem nos votos perpétuos têm significados religiosos: Maria da Paz, Maria Jacinta, Maria Olívia, Irmã Seráfica. Mesmo depois de tanta entrega, elas mantêm o senso de humor: “O nome Olívia é por causa da Olívia Palito do Popeye”, brinca irmã Maria Jacinta. Ela conta que foram doar sangue e quando a atendente perguntou se elas fumavam ou bebiam, disse: “Só um copinho de vodca”.


Sobre a convivência de 16 religiosas na mesma casa, Maria Jacinta explica: “Não brigamos. Somos de culturas diferentes, lugares diferentes, jovens, mas o convívio é um aprendizado, uma oportunidade de colocar em prática o que aprendemos nos evangelhos”.


Filhos e filhas da pobreza



Os quartos dos irmãos enfermos são limpos e espaçosos, as colchas das camas de hospital, coloridas. Na porta, onde se lê “Clausura”, os visitantes não entram. É ali que as meninas dormem “em colchões no chão” e guardam seus objetos pessoais.



A Casa Nossa Senhora das Dores abriga onze irmãos enfermos, a maioria completamente dependente, com AVC, câncer, Alzheimer, alguns em fase terminal. “Damos banho, comida na boca, trocamos fraldas e medicamos, de acordo com a prescrição de médicos voluntários”, diz irmã Maria José. Só dois comem sem ajuda: Neguinho e Seu Humberto. “Mesmo assim se sujam muito, vai mais comida no chão do que na boca.”


Os irmãos são pessoas sofridas, acabadas. “Jovem”, ou Florisvaldo, o mais novo da casa, tem 30 anos, mas parece ser bem mais velho. A maioria deles não fala, estão em cadeiras de rodas. Estavam em outras casas da Toca e foram regredindo em sua saúde. “A realidade das ruas, somada à fome, sol e chuva, faz com que eles tenham a saúde muito debilitada”, diz Maria José.

Terça-feira é de dia assistir à missa das 18 horas na catedral e depois ajudar na distribuição de macarronada na Praça da Sé. Chego no horário combinado e entro pela cozinha, ao lado de um dos quartos dos irmãos doentes. São 5 horas da tarde e eles dormem, deitam depois do almoço e vão levantar-se às 6 para trocar de fralda e jantar.


A cozinha é limpa, espaçosa; tem um forninho de micro-ondas em bom estado, filtro soft com água gelada e natural e algumas garrafas térmicas sobre a mesa. Nas prateleiras da despensa há formas, panelas grandes, sacos de arroz Tio João, bacias de plástico e óleo de comida. “É tudo doação,” - frutas e legumes em bom estado nos cestos, caixotes e engradados plásticos. Pimentões, laranjas, cebolas, abacaxis, maçãs, ervilhas, bananas e maracujás, engradados com ovos, latas de leite Ninho e Sustagem. Na mesa, uma cesta cheia de bombons embrulhados em papel colorido – além de cuidar da casa, dos internos e das práticas religiosas, as meninas fazem trufas de chocolate e rosários de sementes para vender e ajudar nas despesas da casa.


Só três irmãs vão para a Praça da Sé: Patrícia, Miriã e Cíntia. Elas fazem um lanche rápido de salada, bolacha, suco, miojo e pão. Enquanto espero, ouço a reza que vem da capela. Elas assistem a uma missa por dia, geralmente na igreja São Rafael, ao lado da casa, às 17 horas, todas se reúnem para a Sublime Hora Fraterna, com cânticos, oração e leitura da Liturgia das Horas, um livro usado por freiras e padres do mundo inteiro. Das 12 às 19 horas, cada uma escolhe o seu momento de oração individual e estudo da Bíblia.


Ajudo a levar as sacolas de remédios. Serão entregues para os irmãos da Toca Campos Elísios, que vamos encontrar na Sé. A Vila de Assis é a maior casa em São Paulo, acolhe 150 pobres de rua, consagrados e postulantes (homens).


Missa na catedral, terço e macarronada



Na missa das 18 horas na Catedral da Sé encontramos religiosos de Osasco, Butantã, Embu das Artes, Cotia e Campos Elísios. Cíntia e Miriã ajudam o padre na leitura dos evangelhos. Finda a celebração, vamos para o Terço na praça. “Esse trabalho é para irmãos que não moram nas casas, geralmente lotadas, pois só acolhemos os mais necessitados. A macarronada é uma forma de chamar pra missa o pessoal que fica na rua”, diz Cíntia.



Quem organiza o Terço é a Vila de Assis, o pessoal das outras casas ajuda, transporta em suas kombis as panelas de macarrão e os irmãos para servir a comida e distribuir os pratinhos e garfinhos.

Todas as semanas, o frei Romero (consagrado) transporta a estátua de Nossa Senhora em seu carrinho de mão, aquele dos catadores de papel, só que novo e pintado de bege. Ele puxa a carroça da Rua Conselheiro Nébias, nos Campos Elísios, até a Praça da Sé. “Talvez seja difícil, mas ele gosta. É para chamar a atenção dos irmãozinhos. Eles veem que ele não é orgulhoso e não têm aquela dificuldade de se aproximar, vão se achegar, confiar”, afirma Miriã.



São 19 horas e – em plena praça – as caixas de som estão ligadas e já se ouvem os primeiros acordes do violão. “Meu coração explode quando estou na rua com os irmãos”, vibra o postulante Edivaldo, de Cotia. Magrinho e moreno, de óculos, cabelos e roupa de franciscano bem surrada, frei Romero começa a chamar o pessoal: “Vamos irmãos, vamos chegar mais pra frente, vai começar o Terço. Toqueiros e toqueiras, venham, vamos fazer a roda direitinho aqui ó, fazer o círculo em volta de Nossa Senhora. Fecha aí gente, em volta do carrinho, vamos fazer o círculo se aproximar mais da Nossa Senhora”.

Na roda, Patrícia me mostra um pratinho de bolo com o símbolo do Corinthians que ganhou de um irmão da praça. “Ele perguntou: pra que time você torce, eu, pro Corinthians, e ele me deu de presente.”

Depois que irmão Romero distribui alguns rosários, começa a reunião. Entre Ave-Marias, Pai-Nossos e cânticos de louvor, há demonstrações de dança de alguns irmãozinhos de rua com direito a goles de pinga e insistentes pedidos de “respeito”, por parte de outros mendigos. O dirigente continua. Às vezes, coloca o microfone na boca dos irmãos – eles tentam rezar e cantar, mas nem sempre se lembram da letra.


De repente – assim que acaba a reunião – aparece muito mais gente de todos os cantos da praça, vira um formigueiro. Os toqueiros formam três filas de pessoas que já têm um pratinho e um garfinho de festa (descartáveis), na mão. Embaixo da escadaria da igreja, três panelas enormes, cheias de macarrão com carne moída, são distribuídas para dezenas de homens e mulheres famintos.

José Renato Alves, o Zé da Sé, diz que é católico apostólico romano e assiste ao Terço todas as terças-feiras. “Aqui é o meu lugar, moro na praça há 16 anos, desde que puseram fogo em minha casa, em Passos, Minas Gerais. Esse trabalho é importante, não só pela macarronada. A Toca pra mim é tudo, eles vêm nos fortalecer um pouco, amenizar o nosso sofrimento, tentam se fazer como a gente.”



“Benza a Deus, tá gostosa a macarronada, muito boa”, diz o desempregado Walter, morador de Santo Amaro. “Venho quando dá, sabe como é, às vezes não tem comida em casa.”



“A Toca existe por causa deles”, diz Miriã, emocionada. “Começou com a pastoral de rua, visitando e conhecendo esses irmãozinhos, depois foram se juntando outros jovens para fazer grupos de oração, como o Terço de hoje. Assim nasceu a Toca, que cresceu e está em outros países, com todo o carisma, a adoração, a reza pelos sacerdotes. A gente se alegra com isso, não tem como fugir disso.”


* Jornalista e pós-graduanda em Jornalismo Literário pela Academia Brasileira de Jornalismo Literário (www.abjl.org.br), turma São Paulo 2009.

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