aqui tem música, poesia, reflexões, homenagens, lembranças, imagens, saudades, paixões, palavras,muitas palavras, e entre elas, tem cada um de vocês, junto comigo... Cida Torneros
segunda-feira, 29 de junho de 2009
A escritora francesa Catherine Millet esta´ na FLIP
Entre os aguardados autores estrangeiros que estarão na FLIP, nestes próximos dias, em Parati, estão confirmados o americano GayTalese, um dos fundadores do new journalism, modalidade que utilizatécnicas da literatura no jornalismo, e a francesa Catherine Millet, que ganhou notoriedade em 2001, com o relato autobiográfico A vida sexualde Catherine M.
Sonhando acordada
Autobiografia da escritora francesa Catherine Millet discute o ciúmes
Comecei a folhear minha vida desde os primeiros anos partilhados com Claude. Levei para a vida ativa de adulta o método usado durante o período de espera da infância e que não havia me decepcionado, e adquiri o hábito de intercalar o desenrolar de meus dias com constantes e elaborados sonhos diurnos. Eles participam a tal ponto do meu equilíbrio que estou convencida, por exemplo, de que minha inaptidão para aprender a dirigir carros se deve a uma vontade instintiva de dedicar aos sonhos esses momentos tão perfeitamente apropriados que são os deslocamentos nos transportes em comum. Passivo, cativo, o corpo fica tão perfeitamente abandonado quanto durante o sono, enquanto reservamos à inconsistente representação de nós mesmos, com a qual o substituímos, uma posição quase sempre melhor, mais bem controlada do que nos sonhos noturnos. Aliás, quem, ao sair de um sonho ruim, nunca tentou prolongá-lo, para poder corrigir a impressão nefasta, com o happy end de um devaneio consciente ou semi-inconsciente? Todos aqueles que compartilham comigo essa tendência sabem o prazer que tiramos das janelas abertas, na altura do metrô de superfície, e que nos mostram sem pudor flashs de intimidade, das fachadas, com seu reverso secreto, ao longo das quais deslizamos quando atravessamos de carro uma cidadezinha do interior, das conversas entre nossos vizinhos no compartimento de um trem, nas quais nos intrometemos fingindo que estamos dormindo. Por mais breve que tenha sido a visão, por mais fragmentada que seja a percepção de nossos companheiros de viagem, uma minúscula porção de nós mesmos também é arrancada e, como essas câmeras de televisão indiscretas, que fingimos serem manipuladas por um operador invisível, continua penetrando no interior do apartamento parisiense, da casa do interior, da briga familiar no banco ao lado. O sonhador difrata sua vida. O mundo desenrola diante de seus olhos tantas imagens atraentes, ou perigosamente curiosas, que ele gostaria de refletir todas, e coloca-as em perspectiva, isto é, aprofunda-as e enriquece-as. Uma teatralização espontânea faz com que, em alguns segundos, ele vá morar naquele apartamento, naquela casa, mesmo que eles sejam o extremo oposto de seu gosto; "Faço parte da vida dessa família", ele gosta de imaginar, percorrido por um arrepio, se a discussão entre essa última revela valores dos quais ele sempre fugiu. De certo modo, os pais de uma criança sonhadora têm razão de temer que mais tarde ela não tenha personalidade, porque o que se entende geralmente por isso é "personalidade única", e, de fato, o sonhador prefere ser várias pessoas, viver várias vidas, muitas das quais têm a mesma consistência e a perenidade de um grão de poeira que uma corrente de ar deixou por acaso na entrada de uma casa. Por outro lado, estamos enganados ao acreditar que aquele que devaneia se afasta do mundo, pois quase sempre suas outras vidas o colocam, pelo contrário, em empatia com ele.
Certos devaneios, é natural, são eróticos, e mergulhei neles muito antes de saber em que consistiam exatamente os atos sexuais, quando eu ainda os assimilava apenas aos beijos na boca e às carícias nos seios. Aliás, é provável que minha natureza sonhadora combine com minha tendência à masturbação. Desde jovem, acompanho minhas sessões de masturbação com construções fantasiosas, a maioria delas longas e muito elaboradas. Elas são recorrentes e vão se tornando complexas e se ramificando ao longo do tempo, às vezes durante anos, como essas novelas que não acabam nunca e cujo roteiro é improvisado de acordo com a inspiração dos autores. Eu não saberia atingir o orgasmo sem elas. No entanto, os devaneios eróticos não estão todos ligados ao ato da masturbação.
Os protagonistas de meus filmes pornográficos mentais têm traços físicos e morais ao mesmo tempo estereotipados e compostos de registro amplo. No interior de categorias - o dono ganancioso de bar ou de clube, o homem de negócios apressado, o bando de jovens desocupados, o estrangeiro que diz obscenidades numa língua que não compreendo, etc. -, vario as idades e os tipos físicos. Excepcionalmente, eles endossam a personalidade de homens reais que fazem parte do meu círculo ou com os quais cruzei por acaso, e nem mesmo se parecem com os astros de cinema que me faziam desmaiar quando eu era adolescente. Se há muitas analogias entre circunstâncias e ações que pude viver e aquelas que são elaboradas pela minha imaginação, se essas últimas prefiguraram surpreendentemente as primeiras ou delas se inspiraram, por outro lado, nem meus parceiros na vida, nem meus amigos, nem simples conhecidos penetram nesses devaneios. Uma dessas fantasias masturbatórias é incestuosa. É facilmente compreensível que, nesse caso, o tabu seja suficientemente poderoso para que eu substitua a lembrança da figura de meu pai por um corpo bem diferente do dele e inconstante. De um modo geral, porém, chego a ponto de me não me permitir apelar para um desconhecido que eu tenha visto na rua. É claro que não posso compor meus personagens de outro modo que não seja a partir de traços de pessoas reais, colhidos aqui e ali, mas essas referências são negligenciáveis, ou dissimuladas, ou inconscientes. Não é possível nenhuma identificação com uma determinada pessoa. Mesmo quando senti, com toda a lucidez, um forte desejo por um homem, sem que esse desejo pudesse ser satisfeito a longo ou curto prazo, ou mesmo fosse possível, nem por isso compensei a frustração realizando-o na fantasia. A constatação é curiosa: o espaço dos meus devaneios é tão impermeável, tão radicalmente proibido a qualquer pessoa que tenha a meus olhos a mínima identidade, que, embora eu pudesse acolher essa pessoa sem muita hesitação na intimidade da minha vida sexual real, se houvesse finalmente essa oportunidade, ela passaria a ser excluída dos meus devaneios eróticos. Posso fantasiar histórias elementos distintos, num nas quais me vejo na companhia desse homem; tenho um encontro com ele, invento nossa conversa, mas a fabulação pára por aí, antes das palavras e dos gestos de luxúria. Sou incapaz de erguer dessa maneira o obstáculo ou a proibição que o real me impõe e ter prazer nessa transgressão mental. Para partir com toda a liberdade, minhas fantasias sexuais têm que soltar as amarras, e é bem provável que o terrível capitão a quem entrego o leme nesse momento não gostasse de ver surgir, num ínfimo sobressalto de consciência, no meio da tripulação, uma figura conhecida que lhe lembrasse as leis da terra firme.
Muitos encontros feitos ao longo da minha vida amorosa e sexual tiveram um tratamento semelhante a essa maneira de folhear a vida e o sonho. Talvez seja exatamente porque blocos de sonhos se intercalam entre as camadas da vida que eles sedimentam, mas com as quais não se confundem, que a própria vida acaba se constituindo como uma estrutura laminada. Tive a sorte de ter minha vida logo sustentada por um eixo sólido, fornecido de um lado pelo meu trabalho, principalmente na art press, cujos objetivos sempre foram claros para mim, e reforçado, por outro lado, pela vida de casal com Claude que, pelo fato de que nós éramos, de certa forma, solidários no nosso começo de vida social, e também porque ela não era um entrave para a nossa liberdade sexual, não tinha porque ser questionada. Então, durante anos, paralelamente a esse eixo, segui segmentos de diversas outras vidas, entre as quais algumas correspondiam a relações longas e profundas. Escrevo "vidas" e não "aventuras", porque um ritmo, regras, ritos específicos caracterizaram cada uma dessas relações. Elas representaram várias oportunidades de me transportar para outros palcos, de explorar, como fazem as atrizes, diferentes modulações: eu era boêmia, vadia ou burguesa, de acordo com o nível daquele que freqüentava - e que ele me atribuía, os amigos que me apresentava, os restaurantes onde me levava para jantar, as atividades e o trabalho para os quais nos encontrávamos. Ignorando muitas contingências, assim como na maioria das ligações para as quais os parceiros só reservam uma parte do seu tempo, como nos adultérios quando são breves, essas vidas paralelas tinham para mim um charme próximo ao dos devaneios; tinham uma textura intermediária: davam consistência às imagens mentais sem a aspereza do real corriqueiro. Foi assim que visitei países, freqüentei certos ambientes, encontrei personagens, ou ainda dormi em casas, usei vestidos, aproveitei certas facilidades das quais meus sonhos podiam me dar vagamente uma idéia, e pouco me importava que todas essas vantagens não correspondessem nem a um modo nem a um estilo de vida permanente. Aliás, sempre fui bem indiferente às marcas sociais, e não é porque eu havia provado os legumes do Moulin de Mougins que deixaria de comer com apetite o primeiro cuscuz que aparecesse, nem seria porque eu tivesse participado de uma orgia no sétimo distrito parisiense que eu não me sentiria à vontade numa festa de casamento, num vilarejo no interior da Úmbria. O sonhador só contabiliza bens imateriais e só atribui uma relativa importância ao fato de que um objeto de seus sonhos, que por sorte tenha se concretizado, volte ao estado imaterial como lembrança. De qualquer maneira, ele não duvida da reversibilidade do processo.
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"A Outra Vida de Catherine M."
Autora: Catherine Millet
Editora: Ediouro
Páginas: 200
Quanto: R$ 39,90
Onde comprar: pelo telefone 0800-140090 ou na Livraria da Folha.
Olá.
ResponderExcluirConheci a Escritora Millet hoje lendo uma matéria da revista istó é,estou pesquisando mais sobre a obra dela,poderiamos trocar e-mails e discursar sobre a obra da mesma.
Grato,
Vitalle Savall,Escritor.
vitta_last@hotmail.com