Brasil: a geração de 68 no poder
Há dez anos, Zuenir Ventura - escritor, jornalista e prestigiado colunista de 'O Globo'- publicou um livro chamado '1968 - O ano que não terminou', um empolgante e detalhado relato cronológico do ano que conduziria à instauração de uma criminosa ditadura militar de extrema-direita que ficaria como o período mais sujo de toda a história do Brasil. Na verdade, a ditadura militar havia sido instaurada em 64, para evitar a posse de um Presidente de esquerda, João Goulart, mas só em Dezembro de 68, com a aprovação do sinistro Acto Institucional nº 5 (o tristemente célebre AI-5), é que a ditadura meias-tintas que até aí se vivia descambou, sem pudor, num regime criminoso que, em nome da luta anticomunista, prendeu, torturou, exilou, assassinou e silenciou toda a elite política e cultural do Brasil, de Chico Buarque a Carlos Marighela. Os generais brasileiros foram os patronos ideológicos e precursores de uma leva de ditaduras militares fascistas que correu então toda a América Latina: Paraguai, Bolívia, Argentina, Uruguai, Chile, Colômbia, Panamá. Os "ásperos tempos", como escreveu Jorge Amado.
O AI-5 seria abolido em 74, seguido de uma amnistia que permitiu o regresso do exílio de gente como Caetano, Chico, Gilberto Gil ou Fernando Henrique Cardoso, que mais tarde viria a ser Presidente. Mas seriam precisos ainda uns anos para que a "suave ditadura" então reintroduzida, desse lugar a uma ditadura sem tutela militar, despoletada pela campanha das 'directas já', reunida na candidatura presidencial de Tancredo Neves. O papel da transição coube ao Presidente-general João Baptista de Figueiredo, célebre por declarar que preferia o cheiro dos cavalos ao dos seres humanos e por ter revelado como era enxertado o seu espírito democrático, quando ameaçou alguns colegas de armas que não queriam abandonar o poder: "Prendo e arrebento quem se opuser à abertura democrática!".
Dez anos depois, Zuenir Ventura acaba de publicar uma espécie de 'prolongamento', desse seu livro de referência: tem o título lindíssimo de '1968 - O que fizemos de nós', e nele, Zuenir, que é a suavidade e a simpatia em pessoa, interroga alguns dos protagonistas da revolta de 68 e da luta armada ou clandestinidade em que se engajaram a seguir, confrontando-os com a mais lógica e inconveniente das perguntas: valeu a pena, onde param os ideais de então?
Dificilmente a pergunta poderia ser mais actual, porque grande parte dessa geração, que eram, então, estudantes, jovens actores e cantores, militantes do 'partidão' ou de organizações de extrema esquerda, estão hoje... no poder. A lista é impressionante: Lula, que só despertaria para a política mais tarde, através do sindicalismo, é Presidente, e Fernando Henrique já o foi. Dina Roussef, torturada barbaramente e em vão pelos militares, é hoje o nº 2 do Governo, com o cargo de ministra da Presidência e coordenadora do Programa de Crescimento Acelerado, uma das grandes apostas de Lula. Gilberto Gil, ex-preso político e exilado, é ministro da Cultura. Franklim Martins, o líder dos estudantes em 68, cuja revolta desencadearia o golpe, é ministro da Comunicação Social. José Dirceu, também antigo líder estudantil e militante da resistência armada (cuja vida daria um fascinante romance), foi o nº 2 do Governo até passar a principal vítima do "mensalão" e, por ironia do destino, ver os seus direitos políticos cassados em democracia. Ele foi um dos presos políticos libertados em 71, por troca com o embaixador americano no Brasil, Charles Elbricht, sequestrado pela guerrilha urbana - e cujos sequestradores foram Carlos Minc, recém-nomeado ministro do Ambiente (com a missão impossível de resistir à destruição crescente da Amazónia), e Fernando Gabeira, deputado e candidato fortíssimo à prefeitura do Rio de Janeiro. E no Governo estão ainda os ex-militantes de extrema esquerda Carlos Ottony Fernandes, na Justiça, e Paulo Vanuci, no Ministério dos Direitos Humanos, além de uma série de senadores, deputados e prefeitos estaduais. Ou seja, nas palavras de José Dirceu, quando Lula entrou no Palácio do Planalto, a geração de 68 também "subiu a rampa".
E que fizeram eles com o poder? É difícil avaliar de fora, porque também não é claro o que os próprios brasileiros pensam. Claro é que Lula tem contra si 80% da imprensa e do "establishment" político e, acima de tudo, por uma questão de classe: apesar dos "banhos de loja" dados à primeira-dama é à sua "entourage", Lula continua a ser visto pelas famílias políticas tradicionais (e que se perpetuam ao longo de gerações, sejam de direita ou de esquerda) como um intruso no meio. Alguém sem currículo político ou intelectual, que gosta de se vestir de "terno" sem gravata e comer churrascos regados com muita cerveja, nos fins-de-semana do Palácio do Alvorada, a residência oficial. É difícil perceber assim o que é oposição política fundamentada e o que é rejeição social, pura e simples. Verdade, é isto, porém: o seu plano 'Bolsa Família' (através do qual é garantido um rendimento mínimo, em troca dos filhos frequentarem a escola e os centros de saúde) tirou já onze milhões de famílias brasileiras da miséria absoluta; o seu plano 'Luz para Todos' poderá ainda cumprir o seu desejo de "apagar a última lamparina a querosene do Brasil"; o seu Plano de Crescimento Acelerado fez explodir o PIB, e o seu plano energético tornou o Brasil auto-suficiente. Dizem que os banqueiros andam felizes e talvez seja verdade, mas, pela primeira vez, sente-se que há uma classe média a emergir no Brasil, intrometendo-se devagarinho entre as duas únicas classes de sempre: os milionários e os miseráveis.
No ajuste de contas ensaiado por Zuenir Ventura, Caetano Veloso, por exemplo, não esconde a sua oposição a Lula, que vê como um "populismo pré-capitalista" e declara-se partidário de Fernando Gabeira. Gabeira, esse, é um verdadeiro fenómeno político. Depois de 68, enquanto alguns, como José Dirceu, foram para Cuba, ele foi para a Suécia e cresceu ideologicamente na social-democracia. Daí, evoluiu para causas como a ecologia, o feminismo, a maconha livre e para a crença de que o que faz falta não é a utopia, mas sim uma política de avanços e ganhos concretos, ao longo de uma vida. "Evoluiu para a direita", dizem os seus antigos "compagnons de route". Não, responde ele, o problema da gente do Lula é que ainda estão agarrados a uma concepção leninista e ultrapassada da importância do papel do Estado em todas as transformações. Já o ministro Franklim Martins, o ex-ortodoxo comunista, hoje confessa-se social-democrata e assume que a luta armada foi um erro: "Um erro que eu cometi estando do lado certo. Mas hoje, boto a cabeça no travesseiro e durmo". Liquidado politicamente pelo "mensalão", à espera de julgamento e insultado nas ruas por onde passa, ressentido e acusado de "arrogante", José Dirceu continua fiel de Lula e orgulhoso do passado: "Não abri mão de nada. Eu me considero representante dessa geração de 68 até hoje. Mudei em muitas coisas, o mundo mudou, mas não nos meus ideais e nos meus sonhos. O Governo Lula tem valido a pena".
Tudo visto, também me parece.
Fonte: Miguel Sousa Tavares Expresso
Há dez anos, Zuenir Ventura - escritor, jornalista e prestigiado colunista de 'O Globo'- publicou um livro chamado '1968 - O ano que não terminou', um empolgante e detalhado relato cronológico do ano que conduziria à instauração de uma criminosa ditadura militar de extrema-direita que ficaria como o período mais sujo de toda a história do Brasil. Na verdade, a ditadura militar havia sido instaurada em 64, para evitar a posse de um Presidente de esquerda, João Goulart, mas só em Dezembro de 68, com a aprovação do sinistro Acto Institucional nº 5 (o tristemente célebre AI-5), é que a ditadura meias-tintas que até aí se vivia descambou, sem pudor, num regime criminoso que, em nome da luta anticomunista, prendeu, torturou, exilou, assassinou e silenciou toda a elite política e cultural do Brasil, de Chico Buarque a Carlos Marighela. Os generais brasileiros foram os patronos ideológicos e precursores de uma leva de ditaduras militares fascistas que correu então toda a América Latina: Paraguai, Bolívia, Argentina, Uruguai, Chile, Colômbia, Panamá. Os "ásperos tempos", como escreveu Jorge Amado.
O AI-5 seria abolido em 74, seguido de uma amnistia que permitiu o regresso do exílio de gente como Caetano, Chico, Gilberto Gil ou Fernando Henrique Cardoso, que mais tarde viria a ser Presidente. Mas seriam precisos ainda uns anos para que a "suave ditadura" então reintroduzida, desse lugar a uma ditadura sem tutela militar, despoletada pela campanha das 'directas já', reunida na candidatura presidencial de Tancredo Neves. O papel da transição coube ao Presidente-general João Baptista de Figueiredo, célebre por declarar que preferia o cheiro dos cavalos ao dos seres humanos e por ter revelado como era enxertado o seu espírito democrático, quando ameaçou alguns colegas de armas que não queriam abandonar o poder: "Prendo e arrebento quem se opuser à abertura democrática!".
Dez anos depois, Zuenir Ventura acaba de publicar uma espécie de 'prolongamento', desse seu livro de referência: tem o título lindíssimo de '1968 - O que fizemos de nós', e nele, Zuenir, que é a suavidade e a simpatia em pessoa, interroga alguns dos protagonistas da revolta de 68 e da luta armada ou clandestinidade em que se engajaram a seguir, confrontando-os com a mais lógica e inconveniente das perguntas: valeu a pena, onde param os ideais de então?
Dificilmente a pergunta poderia ser mais actual, porque grande parte dessa geração, que eram, então, estudantes, jovens actores e cantores, militantes do 'partidão' ou de organizações de extrema esquerda, estão hoje... no poder. A lista é impressionante: Lula, que só despertaria para a política mais tarde, através do sindicalismo, é Presidente, e Fernando Henrique já o foi. Dina Roussef, torturada barbaramente e em vão pelos militares, é hoje o nº 2 do Governo, com o cargo de ministra da Presidência e coordenadora do Programa de Crescimento Acelerado, uma das grandes apostas de Lula. Gilberto Gil, ex-preso político e exilado, é ministro da Cultura. Franklim Martins, o líder dos estudantes em 68, cuja revolta desencadearia o golpe, é ministro da Comunicação Social. José Dirceu, também antigo líder estudantil e militante da resistência armada (cuja vida daria um fascinante romance), foi o nº 2 do Governo até passar a principal vítima do "mensalão" e, por ironia do destino, ver os seus direitos políticos cassados em democracia. Ele foi um dos presos políticos libertados em 71, por troca com o embaixador americano no Brasil, Charles Elbricht, sequestrado pela guerrilha urbana - e cujos sequestradores foram Carlos Minc, recém-nomeado ministro do Ambiente (com a missão impossível de resistir à destruição crescente da Amazónia), e Fernando Gabeira, deputado e candidato fortíssimo à prefeitura do Rio de Janeiro. E no Governo estão ainda os ex-militantes de extrema esquerda Carlos Ottony Fernandes, na Justiça, e Paulo Vanuci, no Ministério dos Direitos Humanos, além de uma série de senadores, deputados e prefeitos estaduais. Ou seja, nas palavras de José Dirceu, quando Lula entrou no Palácio do Planalto, a geração de 68 também "subiu a rampa".
E que fizeram eles com o poder? É difícil avaliar de fora, porque também não é claro o que os próprios brasileiros pensam. Claro é que Lula tem contra si 80% da imprensa e do "establishment" político e, acima de tudo, por uma questão de classe: apesar dos "banhos de loja" dados à primeira-dama é à sua "entourage", Lula continua a ser visto pelas famílias políticas tradicionais (e que se perpetuam ao longo de gerações, sejam de direita ou de esquerda) como um intruso no meio. Alguém sem currículo político ou intelectual, que gosta de se vestir de "terno" sem gravata e comer churrascos regados com muita cerveja, nos fins-de-semana do Palácio do Alvorada, a residência oficial. É difícil perceber assim o que é oposição política fundamentada e o que é rejeição social, pura e simples. Verdade, é isto, porém: o seu plano 'Bolsa Família' (através do qual é garantido um rendimento mínimo, em troca dos filhos frequentarem a escola e os centros de saúde) tirou já onze milhões de famílias brasileiras da miséria absoluta; o seu plano 'Luz para Todos' poderá ainda cumprir o seu desejo de "apagar a última lamparina a querosene do Brasil"; o seu Plano de Crescimento Acelerado fez explodir o PIB, e o seu plano energético tornou o Brasil auto-suficiente. Dizem que os banqueiros andam felizes e talvez seja verdade, mas, pela primeira vez, sente-se que há uma classe média a emergir no Brasil, intrometendo-se devagarinho entre as duas únicas classes de sempre: os milionários e os miseráveis.
No ajuste de contas ensaiado por Zuenir Ventura, Caetano Veloso, por exemplo, não esconde a sua oposição a Lula, que vê como um "populismo pré-capitalista" e declara-se partidário de Fernando Gabeira. Gabeira, esse, é um verdadeiro fenómeno político. Depois de 68, enquanto alguns, como José Dirceu, foram para Cuba, ele foi para a Suécia e cresceu ideologicamente na social-democracia. Daí, evoluiu para causas como a ecologia, o feminismo, a maconha livre e para a crença de que o que faz falta não é a utopia, mas sim uma política de avanços e ganhos concretos, ao longo de uma vida. "Evoluiu para a direita", dizem os seus antigos "compagnons de route". Não, responde ele, o problema da gente do Lula é que ainda estão agarrados a uma concepção leninista e ultrapassada da importância do papel do Estado em todas as transformações. Já o ministro Franklim Martins, o ex-ortodoxo comunista, hoje confessa-se social-democrata e assume que a luta armada foi um erro: "Um erro que eu cometi estando do lado certo. Mas hoje, boto a cabeça no travesseiro e durmo". Liquidado politicamente pelo "mensalão", à espera de julgamento e insultado nas ruas por onde passa, ressentido e acusado de "arrogante", José Dirceu continua fiel de Lula e orgulhoso do passado: "Não abri mão de nada. Eu me considero representante dessa geração de 68 até hoje. Mudei em muitas coisas, o mundo mudou, mas não nos meus ideais e nos meus sonhos. O Governo Lula tem valido a pena".
Tudo visto, também me parece.
Fonte: Miguel Sousa Tavares Expresso
Muito oportuno, fiel e necessário este seu texto. É preciso sempre relembrar essas páginas negras da nossa História para evitar que as mesmas se repitam. E quem pode ainda fazê-lo somos nós, os desta geração. Sempre estou vindo aqui para ler seus textos, eles são muito bons. E necessários! *rs
ResponderExcluirObrigado pelas visitas e generosas palavras que tem para com os meus poeminhas.
Abraços.
Por sinal, Cida, eu tenho um tanka (o XI–Setentávamos) que fala justamente dessa época aí, fins dos 60 início dos 70. Ele está lá no blog, se puder, dê uma olhadinha.
ResponderExcluirAbrs.